O Observatório Português de Saúde considera que a resposta dos serviços na área da saúde mental é ainda insuficiente e propõe melhorias na articulação com os cuidados de saúde primários e um sistema menos burocrático. No relatório hoje divulgado, o Observatório critica ainda os cortes feitos na despesa, lembrando que estes foram feitos sobretudo à base da comparticipação de medicamentos e que o Governo deve rever o sistema de comparticipação e financiamento. Além disso, os técnicos do Observatório notam ainda que os cuidados primários de saúde continuam a não ser uma prioridade.
No extenso Relatório de Primavera 2014 do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS), os técnicos dizem que Portugal está perante uma conjugação de fatores desfavoráveis na área da saúde mental, agravada pela resposta insuficiente e sustentada por um sistema de informação “aparentemente medíocre”.
Citando dados do Infarmed e do INE (Instituto Nacional de Estatística), o OPSS chama a atenção para o aumento do consumo de antidepressivos, nos casos de desemprego, na emigração e nas famílias a viverem no limiar da pobreza.
“Estamos, assim, perante um cenário de elevada prevalência base de doença mental, num contexto em que os determinantes sociais de saúde são extremamente desfavoráveis, sendo que normalmente coexistem nas mesmas pessoas potenciando sinergicamente o seu efeito”, considera.
Sublinhando que o Plano Nacional de Saúde Mental (2007-2016) definia um conjunto de áreas prioritárias e ações a desenvolver, o relatório sustenta: “Apesar disso (…), continua a haver um número importante de necessidades não satisfeitas ao nível da organização de serviços, prestação de cuidados e investigação epidemiológica”.
Ainda sobre o consumo de ansiolíticos e hipnóticos, o OPSS salienta que as recentes alterações legislativas sobre a prescrição deste grupo de medicamentos (abolição do uso das prescrições triplas) “poderão condicionar o seu padrão de consumo”, pelo que importa caracterizar e estudar o seu impacto na saúde.
Em relação ao controlo da diabetes, o Observatório assinala como positiva a evolução dos indicadores relativos aos resultados ao nível dos registos nos cuidados primários, mas lembra o aumento dos reinternamentos por descompensação oucomplicações da diabetes e o aumento das amputações dos membros inferiores, contrariando a tendência de redução que se vinha a verificar.
As doenças infeciosas são também consideradas das mais sensíveis aos determinantes da saúde afetados pela crise. Assim, como aspetos positivos, o Observatório aponta a diminuição do número de casos de infeção e da taxa de mortalidade por VIH/Sida e o decréscimo da taxa de infeção em utilizadores de drogas injetáveis.
Todavia, contrapõe com “um aumento da taxa de prevalência de infeção por VIH/Sida em populações mais vulneráveis” e “um decréscimo muito acentuado do número de testes rápidos realizados nos CAD”.
Chama ainda a atenção para a “redução acentuada (cerca de 60%) no número de seringas distribuídas entre 2009 e 2012, ao abrigo do programa ‘Diz não a uma seringa em 2ª mão’”, e para a “redução acentuada (70%) na distribuição gratuita de preservativos masculinos”.
Quanto aos estilos de vida, reconhecem a existência de diversos programas de intervenção – como o Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável e o Regime de Fruta Escolar -, “alinhados com as recomendações internacionais”, mas “dotados de escassos recursos humanos e materiais”.
“O facto de os dados indicarem que o consumo alimentar da população portuguesa sofreu alterações com a crise, que se vive no país, pode ter sido esta uma das principais responsáveis por essas alterações”, consideram os especialistas do OPSS, sublinhando: “o decréscimo do consumo de proteína de origem animal pode não ser um indicador que segue as lógicas do saudável, mas as lógicas socioeconómicas, ou seja, consomem menos proteína animal, aqueles que não a conseguem comprar”.
Dificuldades no acesso aos remédios
O Observatório da Saúde alertou para o facto de a redução da despesa na saúde ter sido feita sobretudo à custa dos cortes na despesa com medicamentos e criticou as dificuldades crescentes de acesso aos remédios.
No relatório, o OPSS reconhece algumas vantagens da intervenção do Ministério da Saúde relativamente à política do medicamento, mas sublinha que esta “não está isenta de efeitos secundários, alguns dos quais perniciosos”. O documento enaltece o aumento contínuo da taxa de penetração dos genéricos e a diminuição da despesa pública com medicamentos, mas, ao mesmo tempo, chama a atenção para as dificuldades de funcionamento no circuito do medicamento, uma vez que se continuaram a registar falhas no abastecimento.
“Não se pondo em causa a importância de algumas das medidas adotadas neste setor, não se podem ignorar as dificuldades crescentes de acesso ao medicamento, quer as que decorrem das limitações financeiras das pessoas, quer das dificuldades de distribuição de alguns medicamentos”, refere o documento.
Os técnicos do Observatório dizem ainda que é urgente remodelar o sistema de comparticipação e financiamento, considerando que este é um dos principais eixos de ineficiência do atual modelo de acesso e disponibilidade dos medicamentos inovadores aos doentes.
O relatório alerta para o facto de a contração da despesa na saúde ter sido feita sobretudo à custa dos cortes na despesa com medicamentos, mas simultaneamente questiona como é possível continuar a haver um agravamento da dívida da saúde, quando o “equilíbrio financeiro foi a justificação para os cortes na saúde.
Citando a “Síntese de Execução Orçamental” de abril de 2014, da Direção Geral do Orçamento, o relatório salienta: “O saldo do SNS [Serviço Nacional de Saúde] no final de abril situou-se em -104 milhões de euros, representando um agravamento de 28,4 milhões de euros face a igual período do ano anterior”.
“Estes dados não se constituem como exceção, mas sim como regra. Ou seja, o ritmo de agravamento da dívida da saúde mantém-se, grosso modo, inalterado, malgrado as regularizações periódicas de dívidas conseguidas pelo Ministério da Saúde”, acrescenta.
O Relatório da Primavera 2014 indica ainda que a margem do sector da distribuição (farmácias e grossistas) reduziu 334,1 milhões de euros em apenas três anos, sublinhando que “o objetivo definido no Memorando de Entendimento era de 50 milhões de euros” e lembrando os casos de insolvência de farmácias.
“De dezembro de 2012 a dezembro de 2013, isto é, no intervalo de um ano, registou-se mais do que uma duplicação no número de insolvências das farmácias abertas ao público (+ 64 farmácias) e um aumento de 47,2% no número de penhoras (+ 85 farmácias), num total de mais 149 farmácias”, recorda.
O OPSS alerta ainda para outra consequência da baixa de preços: “os medicamentos vendidos em Portugal tornaram-se alvo de exportação paralela, sobretudo para os países do Norte da Europa”.
“Os dados existentes apontam para que a exportação paralela em Portugal está a aumentar e é superior a 73M€. Em valor, a exportação paralela representa mais de 21% do total das exportações de medicamentos para a União Europeia”, acrescenta.
Face a estes dados, o OPSS alerta para o potencial aumento de problemas de adesão à terapêutica por parte dos doentes – quer pela dificuldade de acesso ao medicamento, quer por constrangimentos económicos – e para a degradação dos resultados em saúde que esta situação pode trazer.
O OPSS é uma parceria entre a Escola Nacional de Saúde Publica da Universidade Nova de Lisboa (ENSP), o Centro de Estudos e Investigacão em Saúde da Universidade de Coimbra (CEISUC) e a Universidade de Évora, este ano reforçada com a Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa.
Cuidados primários não são uma prioridade
O Observatório Português de Saúde lamenta que os Cuidados de Saúde Primários continuem a não ser prioridade, apesar de terem um papel determinante em momentos de crise e de o Governo afirmar sistematicamente que são uma área a privilegiar. O OPSS aponta o dedo aos cuidados de saúde primários (CSP) como um dos casos mais evidentes do “estado de negação” e de “silêncio” do Governo face aos efeitos da crise e à falta de investimento na saúde.
Lembrando que este é um dos temas que “vêm sendo apontados como problemáticos” há mais de dez anos, o OPSS considera que o ministério não lhe tem dado a devida prioridade.
O relatório refere que os CSP são “sistematicamente referidos no discurso político como a área a privilegiar”, para além do “papel determinante” que podem assumir em momentos de crise, como o atual.
“No entanto, a prática política sugere-nos que os CSP não se têm constituído como prioridade”, acusa o observatório, frisando que apesar de “algumas evoluções positivas”, persistem problemas que dificultam a prestação de cuidados de saúde ao utente.
Como aspetos positivos, o relatório destaca a criação e aprovação do perfil profissional do enfermeiro de família, a abertura de vagas para o internato de medicina geral e familiar e a abertura de algumas Unidades de Saúde Familiar (USF) novas.
No entanto, prevalecem dificuldades no dia-a-dia dos profissionais que “dificultam muito” a prestação de cuidados, como um sistema de informação deficiente, a falta de recursos humanos e a fragilidade de algumas unidades funcionais, sublinha.
O observatório questiona também a falta de investimento nas USF (Unidades de Saúde Familiares), quando se sabe que constituem uma mais-valia e que estão previstas no memorando de entendimento. O relatório salienta a “evidente” poupança e mais-valias das USF, considerando “inexplicável que não se incremente a criação de mais USF e a passagem de USF modelo A a modelo B”.
O modelo A inclui as USF do sector público administrativo com regras e remunerações definidas pela Administração Pública, aplicáveis ao sector e às respectivas carreiras dos profissionais que as integram, enquanto o modelo B abrange as do sector público administrativo com um regime retributivo especial para todos os profissionais, integrando remuneração base, suplementos e compensações pelo desempenho.
“Sendo os CSP essenciais num cenário de crise e sendo as USF consideradas, nacional e internacionalmente, uma boa aposta, porquê este impasse? O próprio MdE [memorando de entendimento] negociado com a Troika recomendava o seu incremento”, sublinha o observatório.
Na análise deste ano, o OPSS chama a atenção para a necessidade de intensificar o ritmo de reorganização, desenvolvendo as várias unidades funcionais, dos CSP.
Aperfeiçoar os indicadores e o modelo de avaliação do desempenho, atribuir autonomia de gestão e responsabilização aos agrupamentos de centros de saúde, desenvolver os sistemas de informação, instituir uma política previsional de recursos humanos e avançar com as experiências do enfermeiro de família, são algumas das principais recomendações do observatório este ano, no âmbito dos CSP.
O OPSS chama ainda a atenção para a necessidade de se avaliarem os resultados das Unidades Locais de Saúde (ULS), revelando ter iniciado com o presente relatório “uma linha de investigação relacionada com as ULS”.