Milhares de pessoas andaram para cima e para baixo na Avenida da Liberdade, esta sexta-feira à noite, de olhos postos num mapa. A concentração no papel era tanta que uma pessoa bateu de testa contra um parquímetro. Não eram turistas, eram festivaleiros. E o mapa era o das várias salas de concertos por onde se dividiam os mais de 20 artistas que atuaram no primeiro dia do Vodafone Mexefest. St. Vincent e tUnE-yArDs, os dois destaques, justificaram a bilheteira esgotada.
Os cabeças de cartaz podiam ser anglo-saxónicos, mas foi em português que o Mexefest abriu, primeiro com Sara Paço no Palácio Foz, e praticamente em simultâneo com Ana Cláudia na Sociedade de Geografia de Lisboa. Ambas acabam de lançar o primeiro álbum a solo. Mas Ana Cláudia decidiu estrear-se na belíssima Sala Portugal com “Amor em Dó”, uma música que, curiosamente, não faz parte do disco De Outono (disponível para download gratuito).
Acompanhada por bateria, teclas e contrabaixo, o instrumental por vezes minimalista deixa o protagonismo para a voz, que sobressai a cada canção. Cantora de formação jazz, perante o muito público que compareceu à chamada, sentado confortavelmente nas cadeiras de madeira e a respeitar o silêncio que a música pedia, a voz de Ana Cláudia não tremeu. E até houve tempo para se lançar a uma versão de “All is Full of Love”, de Björk. “Obrigada por terem vindo e bons concertos”, disse com fair play, não no final do espetáculo, mas pelas 20h15, quando muita gente saiu para outras paragens. A confusão dos vários concertos ao mesmo tempo estava a começar.
Trocámos a doçura de Ana Cláudia e os lugares sentados pelo rock dos também portugueses Old Yellow Jack, que ao contrário do que o nome possa dar a entender são bastante novos. Guitarras e baixo elétrico mais bateria, ambiente escuro, gente de pé e a saltar. O Cinema São Jorge estreou-se no Mexefest com rock endiabrado, mas foi o rap que mais gente atraiu. “O meu nome é Capicua e vou contar-vos uma história”. Foi assim que a rapper do Porto anunciou que já estava pronta a dar espetáculo em Lisboa, e o público compareceu em força para ouvir. Não é habitual o rap atrair muita gente num festival de música alternativa, mas já não é surpresa que a “Sereia Louca” é um fenómeno de popularidade. Capicua agradeceu o ano “intenso” e prometeu “um concerto especial”, que teve direito às convidadas Aline Frazão e Gisela João, esta última para a união entre rap e fado conseguida com a música “Soldadinho”. Por trás das artistas, as ilustrações de Dário Cannatá feitas no momento decoravam as canções. À frente, as cabeças do público curvavam-se ao ritmo do rap.
A avenida já tem decorações de Natal e os festivaleiros andavam para cima e para baixo, prova viva de que os gostos são diferentes e variados. Às 20h30, havia uma igreja cheia à espera dos JJ. Com um meio sorriso, Elin Kastlander subiu ao palco por entre ecos. Seguiu-se Joakin Benon, carismático e irrequieto, completando o duo. Uns iam saíndo, outros entrando, mas a “sala” não deixou de estar cheia. A voz suave de Erin e as atmosferas vibrantes dos JJ encaixaram na perfeição no ambiente acolhedor da pequena igreja de S. Luís dos Franceses e a atuação, irrepreensível, deixou os ouvintes rendidos (ou terá sido o sorriso de Erin?).
Pontualidade britânica. Às 22h00, os tUnE-yArDs inauguram o Coliseu dos Recreios com “Stop That Man” e mostraram logo que a percussão e as influências africanas iam dominar as sonoridades. Em palco havia cinco músicos, com a excêntrica Merrill Garbus no centro. Também no centro, mas do alinhamento, esteve o álbum Nikki Nack, lançado em maio deste ano. Do mesmo álbum, “Hey Life”, “Water Fountain” e, a fechar, “Left Behind”, foram das canções mais celebradas, mas “Gangsta” e “Bizness”, do álbum anterior, de 2011, também fazia parte dos conhecimentos do público que encheu o Coliseu (os camarotes estavam fechados, mas teriam sido alegremente ocupados por mais gente). Não será surpresa se os voltarmos a ver em Portugal num grande festival de verão.
Entretanto, no Cinema São Jorge, esperava-se. Já passava da hora marcada quando João Marcelo — ou melhor, Éme — subiu ao palco da sala Montepio. Sozinho, tocou alguns breves temas, um deles antigo, “logo menos ensaiado”. Vieram depois os amigos Júlia Reis, Lourenço Crespo e Miguel Abras, convidados no recente lançamento Último Siso. Depois de alguns problemas técnicos, que serviram de mote para uma conversa com o público, a música de Éme, mais “cheia”, animou o serão de quem por ali ficou.
Dilema: ver Pharoahe Monch, Shura, Clã e convidados, Kindness ou King Gizzard & The Lizzard Wizzard? Às 23h15 os australianos King Gizzard & The Lizzard Wizzard começaram a tocar, mas cá fora para entrar na Garagem da Epal a fila era imensa e o espaço muito pequeno. A noite fazia-se fria, mas o público não arredava pé. Na Estação do Rossio, a zona de concertos encheu para receber os Kindness. E aqueceu. A abrir o concerto, uma cover de Whitney Houston, “I Wanna Dance With Somebody”. Segiu-se uma dose de boa disposição, bem temperada com os ritmos R&B da banda, que levou ao rubro o público presente.
Depois de Capicua, a Sala Manoel de Oliveira do Cinema São Jorge encheu-se novamente para um concerto de celebração. Com mais de 20 anos de carreira, os Clã eram uma espécie de “avozinhos” deste primeiro dia de Vodafone Mexefest, mas apenas pela longevidade na carreira. Entrega e bom desempenho em Clã já não são novidade, mas o que se viu no São Jorge foi uma celebração, com direito a dois convidados especiais: Sérgio Godinho e Samuel Úria. A banda portuguesa passou pelas várias fases da carreira. No final, Samuel Úria entrou em palco para cantarem juntos a doce “Canção de Água Doce”, cuja letra foi escrita por ele. Quase no final, em “Corda Bamba”, houve quem se levantasse das cadeiras para atos de “rebeldia” no sempre composto São Jorge. Recordou-se “Artesanato”, com Sérgio Godinho em palco e, no final, Manuela Azevedo aproveitou para contar o álbum ao vivo Afinidades, que os dois fizeram em conjunto, “soube a pouco” porque dali não saiu nenhuma canção feita pelos dois. “Sopro do Coração” chegaria no terreiro disco para compensar e tornou-se numa das músicas de maior sucesso dos Clã. No final, Manuela Azevedo pediu ao público para cantar com ela e a resposta ao apelo produziu um momento bonito.
A pouco e pouco, o Coliseu dos Recreios foi-se enchendo para receber a artista mais aguardada da noite — St. Vincent. Surgiu sozinha em palco, mas a guitarra não tardou a aparecer. E é quando toca que St. Vincent se torna de facto St. Vincent. Começou com “Digital Witness”, seguida de “Cruel”. Teatral, saudou os freaks de Lisboa. Inspirou com um discurso sobre a esperança, dedicado a todos aqueles que um dia sonharam ter asas e voar, e encantou com a sua música. Depois de uma pausa, deixou as coreografias robóticas de lado e regressou para um encore mais “rockeiro”, cantando sentada no chão. A seguir a “Prince Jonhy”, houve tempo para algum revivalismo com “Your Lips Are Red” do já quase longínquo primeiro álbum, Marry Me, de 2007. Com a guitarra a liderar, chegou mesmo a “mergulhar” no público para um crowdsurfing. O concerto, estranho como ela própria, não foi de todo consensual, mas não sairá tão cedo da cabeça dos lisboetas.
O Vodafone Mexefest regressa no sábado para o segundo e último dia, com Wild Beasts, Palma Violets, Sharon Van Etten, Perfume Genius, Cloud Nothings e Throes + The Shine. O Observador vai continuar a reportar aqui, no Twitter e através de reportagens vídeo em direto.