Ora tome lá uma adivinha:
Qual é coisa, qual é ela,
Que faz as crianças do Luso gritar
Mesmo quando imenso frio estão a rapar?
A solução não é óbvia, mas cá vão pistas. Primeiro, o contexto geral: a vila do Luso, terra afamada pelas suas termas e água, mudou de nome por quatro dias. Até domingo, chama-se Luso Com Gás. Trata-se de uma ação publicitária da marca de águas Luso destinada a promover um novo produto, que teve esta quinta-feira o ponto alto. E que apanhou os habitantes da vila de surpresa.
À Ti Glória, peixeira de toda a vida no mercado local, já pouca coisa a surpreende, mas mexerem-lhe no nome da terra em que nasceu, e isso deixou-a (quase) sem palavras. “Mudaram? Nós aqui é sempre Luso, por amor de Deus!” Ela realmente já tinha visto uma azáfama pouco habitual na vila, geralmente pacífica. Mas não sabia da recente gaseificação, nem da presença, esta quinta-feira à tarde, do cantor André Sardet naquelas ruas. Quando fica a saber, a indignação desaparece e o sorriso abre-se. “Gosto muito dele! Adoro-o.”
Será então André Sardet a solução para a adivinha? Talvez, já lá vamos. Voltando à ti Glória, já toda sorrisos, a pensar que está a falar para a rádio, o que a aflige agora é não poder ver o cantor de Coimbra que empresta a voz a um hino da Luso Com Gás e cujo videoclip é gravado no centro da vila mais tarde. “Só tenho pena de não estar cá logo”, diz, explicando em seguida que, como todas as tardes, tem de ir à lota de Mira buscar o peixe que vai alimentar os lusenses no dia a seguir. Ida e volta são 90 quilómetros, duas horas de viagem que não se podem suspender só porque há gente famosa nas redondezas. “Já quando cá vieram o Jorge e a Sónia, no verão, eu não pude vê-los”, lamenta.
Nem de propósito, a não muita distância está gente que conhece o Jorge (Gabriel) e a Sónia (Araújo) de ginjeira. Basta atravessar a rua. Por um dia, o antigo casino das termas, decorado com exuberantes pinturas neoclássicas, serve de quartel-general a um batalhão de pessoas vindo diretamente do Porto para a gravação do videoclip. A Sociedade da Água do Luso convidou André Sardet para compor e musicar o hino e pediu a mais de 150 habitantes da terra para formarem uma orquestra de garrafas. Mas não abdicou de figurantes.
O grupo que agora ocupa o salão principal do casino chegou ao Luso às oito da manhã. Saíram do Porto quase duas horas antes, o que obrigou estas cinquenta pessoas a levantarem-se entre as cinco e as seis da manhã. Por isso, às onze e meia, é hora de desembrulhar o farnel. “Os figurantes de Lisboa são mais fracos”, afirma Joaquim Pinto enquanto remata uma sandes de panado. Em cima da mesa há queijo, presunto, panados, sumos e cervejas. Depois de alguma resistência, até o jornalista se vê a braços com uma sandes de panado, um rissol de camarão e um ice tea. Em jeito de sobremesa, as histórias.
Há uns meses, Joaquim teve de se reformar por invalidez do antigo emprego e seguiu os passos da mulher Margarida e do filho Carlos, patrão da agência de figuração responsável por trazer estas pessoas hoje ao Luso. Margarida é quem mais experiência tem na mesa, é figurante há quatro anos. Ela e outras colegas estiveram, durante muitos dias, a aplaudir a “Praça da Alegria” nos estúdios da RTP no Monte da Virgem, em Gaia. “Ficámos com um desgosto” quando o programa saiu do Porto, lembra Margarida. “Foi só choro”, completa uma amiga.
Na repetição é que está o ganho
Para eles, o dia é de trabalho e já vai longo. O hino da Luso Com Gás não terá mais do que 30 segundos, mas para que tudo saia bem no vídeo é preciso repeti-lo muitas vezes. As crianças das escolas locais logo o saberão, ao início da tarde, quando forem chamadas a formar parte da orquestra.
É por volta das duas e um quarto que a vila se começa a agitar. Uma multidão que até aí não se tinha visto em lado nenhum do Luso aparece na principal artéria da vila, junto à rotunda onde a orquestra vai atuar. Também anda por ali um batalhão de jornalistas. E há águas Luso para todos.
É a sede da junta que serve de armazém temporário às imensas paletes que vão chegando à vila em carrinhas de caixa aberta. Lurdes, funcionária autárquica, queixa-se da desarrumação e da falta de verbas para reabilitar o edifício, que já foi escola primária e posto médico. “Então, diz que vai aí ver festa?”, pergunta-lhe uma mulher que entra pela junta dentro com um cão pela trela. “Vai haver aí um reclame. Mas isto é segredo”, diz. E atira: “Eu quero é uma dessas camisolas aqui para o museu!” As camisolas são as que vestem quatro raparigas, de mochilas às costas carregadas da nova água. O museu é uma estante.
A junta não tem mais do que umas quantas salas, todas repletas de águas. Numa das divisões acumulam-se iluminações de Natal, cadeiras e mesas e até antigas carteiras escolares. Noutra, a par das águas, há paletes de cerveja. “Eu pessoalmente não gosto que tenham posto sabores e gás nas águas”, comenta Lurdes, que de manhã ainda não sabia se ia fechar a junta para ver o concerto ou se ia fazer como Américo, que decidiu não ir.
Nascido e criado no Luso, este homem de 65 anos faz questão de mostrar os víveres que compra na banca de frutas de João Marques, no mercado. E de deixar umas críticas à marca de águas. “Sabe o que lhe digo? Foi mau que tivessem tirado o pessoal daqui para outras instalações”. Refere-se à passagem da unidade industrial para uma vila próxima, Vacariça, um local mais espaçoso onde a circulação de camiões ficou facilitada. João Marques não concorda, até porque lhe afetou o negócio, diz. Ele trabalhou cinco verões consecutivos nas termas, nos idos de 1990, antes de se dedicar ao retalho de hortaliças. “Tenho saudades”, diz. Mas também não vai ver a orquestra atuar, há mercadoria para arrumar.
Não é (só) de ausentes que reza a História, por isso fale-se agora das presenças. Relembramos que há uma adivinha a que dar solução neste texto. Ora bem, duas e um quarto da tarde: o largo principal do Luso tem crianças, uma tuna, alunos universitários, idosos da universidade sénior, figurantes e simples habitantes que vieram só dar uma espreitadela. André Sardet é chamado a tirar fotografias com todos estes grupos. Mais do que uma vez. Ouvem-se interpretações espontâneas das músicas do cantor: “Gosto de ti desde aqui até à Lua, desde a Lua até aqui” e Sardet lá vai sorrindo, acenando, dando beijinhos, ensaiando a turba.
Cada pessoa da orquestra tem uma garrafa ou um copo na mão. Uns têm de lhe bater com um objeto metálico, outros têm de soprar lá para dentro, outros têm só de lhe passar os dedos. Tudo para criar o acompanhamento musical à voz de Sardet, que se ouve mais de trinta vezes através de duas enormes colunas. Apesar das muitas repetições a que são obrigados, os membros da inusitada orquestra acedem a cada cantoria com entusiasmo, erguendo as garrafas no ar e gritando vivas ao Luso.
Carolina, dos seus vinte e poucos anos, também anda entusiasmada, apesar de ter uma mochila carregada de garrafas de vidro de água às costas. Formada em termalismo, a rapariga, natural da terra, não consegue arranjar emprego e, por isso, vai fazendo estes trabalhos de promotora. Ao lado, a amiga, também do Luso, acumula quatro empregos para poder viver e ainda faz uma perninha a distribuir águas. Mas o sorriso é o de quem acha que o caminho é para a frente.
Mais de duas horas depois de a orquestra se ter reunido no largo para cantar o hino, as gravações do videoclip estão quase a terminar. Faltam apenas alguns planos feitos com um drone. E eis aqui a solução à adivinha. A música animou-as, André Sardet deixou-as eufóricas, não terem aulas durante um dia ainda mais as entusiasmou, mas, para as crianças do Luso, o ponto alto do dia, aquilo que mais as fez gritar, foi verem um drone a sobrevoar-lhes a cabeça.
Resta apenas dizer que o esforço dos lusenses foi compensado com um pack de seis garrafas de água com gás. E que o resultado da atuação foi este:
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