O jornal satírico Charlie Hebdo regressou hoje às bancas, com uma tiragem de 2,5 milhões de exemplares, quase dois meses depois do ataque terrorista que dizimou a redação do semanário, em Paris.

Desta vez, não houve filas de pessoas que madrugaram para comprar o jornal e os exemplares não foram escoados logo nos primeiros minutos, ao contrário do último número, que ficou conhecido como a “edição dos sobreviventes”, a 14 de janeiro.

“Bom dia! Tem o Charlie Hebdo?”. Esta era a pergunta que se ouvia, a intervalos regulares, no quiosque à saída do metro na Praça da Nation, na capital francesa. O ar cético de quem pensava que não iria encontrar o jornal era substituído pela surpresa e Sandrine Mathieu tentou mesmo a pergunta: “Posso comprar dois?”

A funcionária pública, de 35 anos, disse à Lusa que esteve à espera “dois dias até conseguir a última edição, logo após os atentados”, e agora “tentou” comprar dois exemplares – um para ela, outro para os pais – e conseguiu.

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“Fico muito contente que haja gente a interessar-se para mostrar que lutamos pelo direito de expressão. Fico muito contente que o jornal regresse. Não pensava que um lápis pudesse matar”, afirmou.

Quanto à capa, a jovem declarou ter gostado “muito” e, ainda que não haja Maomé, disse esperar que “não parem de o desenhar”.

“O Charlie Hebdo não se reduz às caricaturas de Maomé”, apontou Marilord Benisti, funcionária no ministério francês da Cultura. “O que é mais curioso é que as pessoas veem o Maomé em todo o lado, mesmo quando não há Maomé nenhum!”, sustentou.

A parisiense, de 59 anos, mostrou-se “aliviada” pela retoma da produção do jornal e também ficou surpreendida por ter conseguido comprar o semanário antes de ir para o trabalho, constatando que “desta vez” havia menos gente nos quiosques.

“Da última vez, não se tratou de entusiasmo, tratou-se de apoio. Ontem, passei aqui no quiosque para ver se iam receber o jornal, mas disseram-me que não sabiam. Fico contente por conseguir comprá-lo”, afirmou, antes de se dirigir apressadamente para a estação de metro.

Na véspera, a gerente do quiosque não aceitou reservas por causa da corrida à compra do jornal desencadeada a 14 de janeiro. Hoje, cerca de uma hora após a abertura já tinha vendido metade dos 50 exemplares que recebeu.

“Desta vez, há menos entusiasmo, mas de certeza que ao meio-dia já não tenho nenhum exemplar. Não houve filas, ao contrário do dia 14 de janeiro, quando abrimos às seis da manhã de propósito”, explicou.

A comerciante, de 35 anos, é muçulmana, “mais ou menos praticante”, e afirmou que “sinceramente” não liga às caricaturas, ressalvando, porém, que “apesar de serem desenhos, o ser humano é muito suscetível e há certas coisas, como as religiões, em que não se deve mexer”.

A gerente do quiosque, que preferiu dar apenas as iniciais do seu nome R.F., notou que, desta vez, “eles acalmaram-se”, ao não colocar Maomé na capa.

Não há Maomé na capa, mas um fundo vermelho-sangue, de onde se destaca um cão com o Charlie Hebdo na boca a fugir de uma matilha de cães enraivecidos a evocarem as figuras de Marine Le Pen, de Nicolas Sarkozy, do Papa Francisco, de um jihadista, de um banqueiro e, no meio da confusão, vê-se um microfone do canal televisivo BFM TV. Na legenda, pode ler-se “C’est reparti” (qualquer coisa como “Aqui vamos nós outra vez”).

Junto ao quiosque, no café “Le Triomphe”, Jean-Philippe Cathelin folheia o Charlie Hebdo enquanto toma o pequeno-almoço, mostrando-se satisfeito com “uma bela edição”, que “parece um jornal habitual” e afastando, assim, “o risco de que o dinheiro venha a perverter o semanário”.

“Reencontramos o Charlie de antes. Comprei por solidariedade, para mostrar que prezo muito os valores de liberdade de expressão. Este humor é uma especificidade francesa e temos que lutar para que continue a existir. Não sei se somos um grande país, mas em comparação com os Estados Unidos, nós podemos mostrar as caricaturas, eles são obrigados a desfocá-las. Há que louvar a coragem que existe aqui, a coragem que teve Charb e que têm os outros”, disse.

O empresário de 67 anos prometeu continuar a comprar, “de vez em quando”, o Charlie Hebdo, num gesto “contra os entraves à liberdade de expressão” que corria o risco de entrar no “politicamente correto, o que seria desastroso para a sociedade francesa.”

Os atentados terroristas contra a redação do Charlie Hebdo, perpetrados a 7 de janeiro, fizeram 12 mortos entre jornalistas e funcionários.

Entre os mortos estavam o diretor e outros três dos principais cartoonistas do jornal: Stéphane “Charb” Charbonnier, 47 anos, jornalista, cartoonista e diretor e Jean “Cabu” Cabut, 76 anos; Georges Wolinksi, 80 anos, e Verlhac “Tignous” Bernard, 58 anos.

No mesmo dia, foi também perpetrado um ataque terrorista contra um supermercado judaico na capital francesa, que fez quatro mortos. Os três autores dos atentados, dois contra o Charlie Ebdo e um no supermercado judaico, foram também mortos pela polícia francesa.