António Ferro faleceu em Novembro de 1956, mas só 30 anos após a sua morte — 15 dos quais passados desde a revolução de 1974 — a sua extensa influência em meio século de vida portuguesa teve uma primeiríssima avaliação crítica, ainda que de âmbito parcial: o trabalho académico de António Rodrigues sobre o seu modernismo na idade do jazz band, que esperou 9 longos anos para sair em livro, muito ajudado pelo providencial centenário do nascimento, em 1995. Ernesto Castro Leal dedicou-lhe em 1988 uma tese de história contemporânea, também ela centrada num tema específico, o jornalista e activista político de 1918 a 1932, a qual aguardou 6 anos por um editor. Outras teses universitárias foram dedicadas a Ferro, como a de Cidalisa Guerra em 2002 e a de Jorge Campos em 2009 — mas acerca destas tudo o que vos posso dizer é que estoicamente me forcei a lê-las até ao fim, e sobrevivi… Quase duas décadas depois do livro de Castro Leal, Margarida Acciaiouli escreveu A Vertigem da Palavra. Retórica, Política e Propaganda no Estado Novo (Maio de 2013), e há semanas saiu António Ferro, Criador do Salazarismo de Orlando Raimundo.
Portanto, é de concluir que em quase tudo o que se escreveu sobre o nosso século XX — e foi muito, e por vezes foi bom —, a singularidade genial de António Ferro foi sendo paulatinamente negada, ou, se preferirem, foi reduzida a uma justaposição instrumental a Oliveira Salazar, de quem ele teria sido apenas o mais hábil e conveniente coadjuvante na manutenção de uma ditadura política. Heloísa Paulo não foi capaz de ir além desse equívoco, no preconceito ideológico em forma de livro que produziu em 1994, Estado Novo e Propaganda em Portugal e no Brasil. Até José-Augusto França escreveu, numa conferência em Cascais em 1995, que «a vida de António Ferro começou em 1932, com as cinco entrevistas a Salazar», seu «patrão escolhido» (v. Boca do Inferno. Revista de Cultura e Pensamento, 1997).
Por tudo isso, não tenho dúvidas de que estes 120 anos do nascimento de António Ferro passariam em claro caso a Fundação António Quadros não existisse, e não vejo nenhuma editora, nem sequer a Imprensa Nacional (que tem responsabilidades específicas), entusiasmada por relançar os escritos de António Ferro, pelo menos a tão certeira antologia Intervenção Modernista, que a Verbo publicou em 1986-87.
De resto, esse sistémico e escandaloso bloqueio crítico-editorial atinge outros protagonistas centrais da vida cultural daquelas décadas do século passado, ligados a António Ferro. A José Leitão de Barros (1896-1967) e António Lopes Ribeiro (1908-95) bastou o rótulo de «salazaristas» para se verem empurrados para o limbo dos desinteressantes — o que eles muito claramente não foram! —, enquanto José Ângelo Cottinelli Telmo (1897-1948), outro que tal, foi tema duma única tese, escrita há precisamente 20 anos e jamais editada…
A maioria dos artistas-decoradores que trabalharam para António Ferro e com António Ferro, no Secretariado da Propaganda Nacional e para além dele, também apanharam por tabela com essa exclusão ou indiferença, apesar do seu indesmentível valor artístico individual. Capista dos livros políticos de Ferro, e seu colaborador destacado no SPN, Bernardo Marques ficou-se pelo estudo de Marina Bairrão Ruivo de 1990-93, pela própria considerado «um esboço». Carlos Botelho é ainda, em múltiplas facetas, um desconhecido — por exemplo, os seus «Ecos da Semana», uma prodigiosa crónica gráfica da vida alfacinha, nacional e internacional que durou décadas, nunca foram estudados e publicados à medida da sua grandeza e originalidade. Thomaz de Mello, Manuel Lapa, José Rocha e Eduardo Anahory praticamente evaporaram-se no tempo, embora os trabalhos dos dois primeiros ainda rendam bom dinheiro nas pequenas feiras de antiguidades e nos alfarrabistas.
Paulo Ferreira, cuja obra gráfica é notável, não foi além de uma exposição individual dos seus desenhos e aguarelas na Fundação Gulbenkian em 1978, sem catálogo e estudos críticos, malgrado a sua inestimável contribuição para o resgaste, exposição e conservação da obra de Amadeo de Souza-Cardoso… Fred Kradolfer, reconhecido como a grande influência, só em 2012 mereceu uma pequeníssima mas muito entusiástica monografia, por Jorge Silva e José Bártolo, que sobretudo serve de aviso e chamariz para trabalhos de maior fôlego. Para Emmérico Nunes, vai valendo o esforço de Isabel Lopes Cardoso (v. Obra Perdida, Gulbenkian, 2013, 508 pp.) e o empenho duma associação cultural sediada em Sines, terra natal do artista.
Cottinelli Telmo escreveu em 1938 que Ferro soube criar em poucos anos uma equipa técnica de altíssima qualidade, que «uma selecção cuidada apurou e que experiências sucessivas refinaram», capaz de mostrar «o que Portugal é». Em 1943, dirá mesmo melhor: «Nestes dez anos de direcção do Secretariado da Propaganda Nacional, António Ferro tem prestado um grande serviço à Nação e aos Artistas, em matéria de Arte. Tem feito muito; tem feito mesmo mais do que aquilo que lhe competia fazer. […] António Ferro, que é artista, compreende perfeitamente a sua psicologia, sabe tirar deles o máximo rendimento, sabe estimulá-los e acarinhá-los como um pai e não como um director tipicamente solene que, sem tirar os olhos da papelada, diz com ar de carrasco: Entre!» E prossegue Cottinelli: «É agradável e consolador ver como António Ferro trata os assuntos com os seus colaboradores artistas. Eles trazem-lhe uma ideia, um esboceto. Está tudo parece que pronto: falta apenas o visto do director!… Mas o director vem com uma ideia nova, um caminho novo. Não desenha nem pinta, porque não sabe, mas a directriz aparece com o valor duma realização plástica… e aquilo que já estava bem passa a estar melhor!…»
A qualidade dos cartazes, das montras e das publicações do SPN sacudiram para sempre os resquícios da estética oitocentista ainda prevalecente, fixando um novo paradigma gráfico, que o modernismo dos anos 1920 não conseguira instituir cabalmente. Foi até Jorge de Sena quem o disse, num depoimento sobre Paulo Ferreira publicado em Setembro de 1977. Já mais tarde, em meados de 1950, José Cardoso Pires interessou-se por Sebastião Rodrigues, quando reparou na vibrante novidade de uma montra do SPN concebida por ele. Por outro lado, a arte efémera de pavilhões em certames internacionais da segunda metade da década de 1930 beneficiou a cooperação entre artistas de diferentes ofícios e competências, um laboratório permanente que estimulou a capacidade de todos fazerem de tudo, do design dum álbum aos figurinos dum bailado, da cenografia duma exposição à decoração duma pousada, dum posto de turismo ou duma simples vitrine.
Nos seus discursos reunidos em cadernos temáticos em finais dos anos 1940 — e que nos dão a medida dum projecto cultural inovador, minuciosamente pensado e articulado («uma obra de perfeita lógica, peça a peça montada», como reconheceu França, na conferência citada) —, fica patente que António Ferro teve de ir defendendo o arrojo estético da sua equipa técnica, que ultras do regime também achavam suspeita do ponto de vista político-ideológico. Mas fez mais do que isso, como o escritor José Rodrigues Miguéis contou numa crónica intitulada «Reencontro em Babilónia». No início da campanha norte-americana de 1939, mal acostaram a Nova Iorque Ferro reuniu os seus colaboradores e disse-lhes: «Eu sei que vocês são todos amigos dele, e hão-de querer encontrar-se com ele. Mas, pelo amor de Deus, façam-no discretamente, onde isso não dê nas vistas!» E o escritor exilado lembrou: «O encontro foi eufórico. […] O Bernardo e a Ofélia, o Fred e a Astrid, o Zé Rocha e a Selma enfim unidos, o Carlos [Botelho] (sem a Dona Brites, que pena!), e além deles Anahory, celibatário. [Cinco anos depois] Estavam os mesmos, pareciam felizes, e o Ontem fez-se Hoje de repente.»
Essa defesa dos artistas e da arte também é confirmada por três outros casos, especialmente significativos, do meu ponto de vista: em primeiro lugar, o prémio concedido logo em 1935 a Mário Eloy, o grande pintor expressionista português, tão próximo da «arte degenerada» condenada pelo nazismo — e lembro que o quadro Lisboa (1934, 115 x 81 cm) esteve durante anos em destaque no gabinete de Ferro; em segundo lugar, a firmeza da decisão de expor obras do escultor Hein Semke, que a Legação Alemã denunciara como «criminoso político», e que mais tarde reconheceu dever a António Ferro não ter sido expulso do país, onde, de resto, criou um enorme e generoso leque de amizades no meio cultural; e em terceiro lugar, a exposição do brasileiro Cícero Dias, que veio para Lisboa directamente dum campo de refugiados em Marselha, sob a influência directa de Ferro, como o próprio pintor reconheceu nas suas memórias, Eu Vi o Mundo, de 2011.
Aliás, para se entender o alcance dessa acção cultural, faça-se notar que a inauguração dessa exposição de Cícero Dias no SPN foi antecedida por uma conferência multimédia sobre a nova arte brasileira apresentada pelo surrealista António Pedro, que praticamente acabara de chegar duma estada dum ano no Brasil, onde conheceu os talentos emergentes no Rio e em São Paulo, alguns dos quais, como Cândido Portinari, influenciadíssimos pelos muralistas mexicanos, para lá de revolucionários…
Por outro lado, — e é apenas um caso — a colaboração de Carlos Botelho nas operações internacionais do SPN permitiu-lhe pintar outras partes do mundo, como Nova Iorque, Veneza, Los Angeles, ou as docas do Mississipi em New Orleans, quadros dum português que sem qualquer favor podem integrar as pinacotecas nacionais, deixando ele de ser apenas «o pintor de Lisboa».
As exposições anuais de arte moderna no Secretariado quiseram ser um contraponto avançado ao «teimoso visualismo oitocentista» (as palavras são dele) dos salões da Sociedade Nacional de Belas-Artes, instituição que em 1921-23 havia sido alvo duma fracassada tentativa de renovação na qual António Ferro estivera muito implicado, como «todos aqueles que vivem na ânsia de abrir clareiras de modernidade nesta ruína ao luar que é a nossa terra», como escreveu então. Sem cortar com o passado, como por vezes se diz que fez, o director do SPN dedicou em 1942 a primeira exposição dos artistas ilustradores modernos à memória de José Pacheko, o designer da revista Contemporânea, falecido 8 anos antes, «o nosso primeiro renovador das artes gráficas do século xx, o ponto de partida para o que outros fizeram — por ele, e por eles próprios.» E quando em 1934 Cecília Meirelles veio a Portugal a convite do SPN para convívio e algumas palestras, quis promover uma exposição do ilustrador Correia Dias, dando a conhecer a muito boa pinta que o antigo e talentoso capista da Ilustração Portuguesa, e não só, fizera na cena artística do Rio de Janeiro.
Além disso, Ferro deu o nome de um dos prémios artísticos do Secretariado a José Tagarro, um promissor artista plástico dos anos 1920, prematuramente falecido. Há na compilação dos seus discursos um intermitente vaivém entre o seu protagonismo vanguardista doutros tempos e a sua função política actual, e aqui e ali uma súbita mas inequívoca nostalgia da «palavra de flama» a que Ronald de Carvalho se referiu, comentando, creio, os extravagantes aforismos das suas conferências, entre os quais os preciosos «O cinema é a piscina dos suicidas» e «A dança é o jardim das mulheres» ou o inquietante «Maples, os grandes sarcófagos da vida moderna»… Em modo institucional, temos «A Arte é o indispensável selo branco da História», «Belas artes e literatura não são uma sobremesa da vida social», e «A literatura e a arte são os cartões de visita dos povos que desejam ter um nome» ou «As montras são os palcos das lojas, a sua ficção».
Depois da Exposição do Mundo Português, o turismo tornou-se a principal área de intervenção de António Ferro e do SPN, sempre envolvendo artistas na decoração das novas pousadas, numa campanha pelo «bom gosto», e em especial na revista Panorama. Revista de Arte e Turismo. Sob a orientação de Bernardo Marques, foi, nas palavras de Cândida Ruivo numa recentíssima história do nosso design, «um momento exemplar de comunicação», que criou «alguns dos momentos mais interessantes das artes gráficas portuguesas». Numa história do turismo em Portugal, o autor vai ao ponto de perguntar, «E se António Ferro não tivesse existido?»
Noutro grande eixo de actuação, as relações culturais com o Brasil, também foi criada a revista Atlântico (1942-50), graficamente orientada por Manuel Lapa. Num verbete enciclopédico, João Bigotte Chorão elogiou essa publicação de letras e artes de «liberal critério», «uma diversificada revista de cultura» que «ultrapassou largamente as fronteiras da propaganda», sendo «em grande parte a imagem de António Ferro, com o seu bom gosto, a sua abertura de espírito, a sua vontade de diálogo».
Como presidente da Emissora Nacional, o incansável renovador percebeu a potencialidade do rádio como factor da integração territorial que já buscara com o teatro do povo e as bibliotecas itinerantes (evidentes precursoras das tão elogiadas da Fundação Gulbenkian), difundindo palestras sobre temas culturais, com colaboradores de alto gabarito, residentes ou a convite, como Luís Reis Santos, Carlos Queiroz, Vitorino Nemésio e Almada Negreiros, algumas das quais foram publicadas no jornal Rádio Nacional. Também fundou o gabinete de estudos musicais da Emissora, justificando-o com a «necessidade de fazer transmitir música popular portuguesa com certo nível» (Problemas da Rádio, 1949, p. 99).
A política é a arte do possível, e um tão longo consulado não podia ser imune a fracassos ou erros, como a política de cinema, provavelmente um imbróglio sem remédio, como sabemos. O mais aceso crítico dessa política foi Roberto Nobre, que curiosamente muitos anos antes havia glosado, com inequívoca camaradagem e admiração, a conferência «As grandes trágicas do silêncio», de 1916. Outros simplesmente não lhe perdoaram a suposta «traição política», ao fazer de contraforte a um regime que pessoalmente deploravam. João Abel Manta, num álbum de caricaturas do tempo de Salazar, cuja violência e acidez são terríficas e impiedosas, quase poupa António Ferro e o SPN, vestindo o seu director de minhota segurando um quadro de Amadeo, entre dois músicos de aldeia, ou desenhando alguns campinos amaneirados do Verde Gaio dançando entre outros, tolhidos por touros bravos. O genial artista, que ilustrou Os Corvos de Leitão de Barros (1964), sabia perfeitamente que, como escreve Filipe Ribeiro de Meneses na sua biografia política de Salazar (2009), «com a partida de Ferro [1950] os esforços de propaganda do regime tornaram-se mais institucionalizados e repressivos e menos criativos».
Numa comunicação à Academia Portuguesa de História, em 1997, Fernando Guedes admitiu que António Ferro «não teve, durante esses anos, um momento de descanso, mas também não descansaram os seus inimigos, os seus adversários de fora e de dentro do regime». E conclui: «Salazar encontrou em António Ferro, em 1933, o génio criador que se ajustava ao seu movimento renovador de Portugal; António Ferro encontrou em Salazar o génio político que o apoiou durante uma dezena e meia de anos e lhe tornou possível a concretização de um sonho e a realização de uma obra que vinham fervilhando no seu espírito desde a juventude.» Ou, parafraseando António Ferro no seu Hollywood, capital das imagens, «Há fazendas caprichosas cuja beleza só se compreende depois dos fatos feitos»…