Estaline terá dito uma vez a Nadeja Krupskaia, a viúva de Lenine: “Se você apoiar a oposição, nós nomeamos uma outra viúva de Lenine”. Michel Heller, na introdução a um livro de entrevistas de Boris Souvarine, conta que, pela altura, toda a gente se interrogava quem seria a possível candidata a viúva substituta e chegou à conclusão que se trataria de uma tal, parece que conhecida, Helena Stassova. Boris Souvarine, que percebia bem Estaline (foi o autor de uma das primeiras biografias críticas do tirano), disse que isso era um disparate, que era a camarada Artiokhina. Heller nunca tinha ouvido falar dela, mas Souvarine explicou-lhe: era a mulher mais feia do Comité Central. Só essa escolha era compatível com a perversidade de Estaline.

Convém notar que Estaline tinha todo o poder para nomear uma nova viúva de Lenine. De resto, passou os seus longos anos de poder absoluto no Kremlin a refazer o passado das mais diversas e variadas formas, de modo que só ele, o “pai dos povos”, pudesse brilhar no firmamento comunista. O poder absoluto sobre a sociedade, para repetir uma banalidade, traz consigo um não menos absoluto poder sobre o passado dessa mesma sociedade. Tudo pode ser refeito a nosso bel-prazer. Ninguém, ou quase ninguém, ousará contradizer a versão dos acontecimentos do tirano. A facilidade de mentir traz consigo, por instinto de sobrevivência, uma facilidade de acreditar desmesurada. Que se alarga a todos aqueles que vêem nessa sociedade o modelo a imitar pelo mundo inteiro. Leia-se tudo aquilo que os comunistas europeus, e uma boa fatia da esquerda em geral (e até alguma direita), escreveram sobre os processos de Moscovo de 1936-1938.  As mais inverosímeis acusações e confissões foram aceites sem pestanejar.

Nada se compara, é claro, com um regime totalitário nestas matérias. Nem as mais banais ditaduras, como, entre nós, a de Salazar, lhe chegam sequer aos calcanhares. Nos regimes autoritários, a mentira é um elemento auxiliar do poder. Nos regimes totalitários ela faz parte da sua própria essência. Se se quiser uma analogia, é a diferença entre alguém com uma certa propensão a mentir e um mitómano, que se encontra na necessidade constante de reinventar o seu passado dia-a-dia para o tornar conforme aos últimos desenvolvimentos da sua mitomania.

Mas, tal como cada um de nós ocasionalmente mente – pense-se nas mentiras que generosamente praticamos com nós mesmos para ganhar coragem para pôr o primeiro pé fora da cama de manhã –, também nas democracias a mentira tem o seu lugar. Sobretudo quando, por ausência de vigilância crítica dos cidadãos e pelo sentimento de impunidade que o poder tradicionalmente confere, ela aparece como um recurso legítimo para os governos se esquivarem àquilo que os pode pôr em causa.

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O extraordinário florilégio de mentiras governamentais reveladas nas primeiras sessões da comissão parlamentar de inquérito sobre a TAP exibiu na perfeição esse tal sentimento de impunidade, alicerçado na confiança da inexistência de uma vigilância crítica por parte da sociedade. Além de, é preciso reconhecer, uma certa tendência, por parte de algumas personagens, para aquilo que se tem bem de chamar desonestidade e até para algo de próximo da mitomania. Este último caso é o de Pedro Nuno Santos e de João Galamba.

Mas o principal fautor – o “facilitador”, como agora se diz – desse florilégio de mentiras, António Costa, não parece ter nada de mitómano. Um mitómano acredita, apesar de tudo, nas mentiras que quotidianamente inventa. Ora, é no mínimo duvidoso que António Costa acredite nas mentiras que emite ou autoriza. Vulgarmente, é um cínico. E o cínico usa os outros em função dos seus próprios interesses. É o autor último das mentiras, mas deixa a sua execução aos outros, que competem pelo seu favor.

Por isso, esclarecer a propensão à mentira de Medina, Pedro Nuno Santos ou Galamba – para não falar do pobre Hugo Mendes –, só faz sentido se não perdermos nunca de vista que a facilidade de mentir que eles exibem tem a sua origem última no ambiente deletério que Costa, consciente e deliberadamente, criou desde o momento em que introduziu, aquando da sua derrota eleitoral face a Passos Coelho, a sua “solução governativa” em Portugal. Se esquecermos isso, o pequeno catálogo de horrores será apenas isso: um pequeno catálogo de horrores. Se nos lembrarmos disso, tudo ganha um sentido que nos permite a compreensão da triste sociedade em que vivemos.

Há poucos dias atrás, Costa proclamou que “não dos devemos preocupar com a verdade”. Numa interpretação da frase que não é, obviamente, aquela que ele pretendia, revelou-nos o essencial do seu pensamento. Afinal de contas, mesmo em democracia a viúva de Lenine pode ser uma qualquer.