O que é que aquelas senhoras e senhores ainda estão ali a fazer? “Aquelas senhoras e senhores” são, obviamente, os membros do Governo, que é o “ali” em questão. Todos os dias a pergunta pode surgir, por uma razão ou outra. E as razões podem pouco ter a ver umas com as outras, já que não há nenhum fio condutor que guie a acção do Governo, se exceptuarmos o interesse do PS e, particularmente, o de António Costa. A irresponsabilidade não obedece aos requisitos de fio condutor, pois, sendo certamente um hábito bem estabelecido entre aquela gente, uma segunda natureza que unifica a sua acção, não é, no entanto, uma ideia. António Costa não tem, de resto, nenhuma: sobre Portugal, sobre o mundo, sobre o que quer que seja. É, para lá da sombra de uma dúvida, uma simples máquina de palavras sem ideias.

Toda esta história da TAP, desde a inversão da sua privatização sob Passos Coelho, exibe esplendorosamente as consequências danosas desta falta de ideias. E a audição, esta terça-feira, na comissão de inquérito da AR, de Christine Ourmières-Widener tornou-as particularmente palpáveis. António Costa, magnífico como de costume, declarou, antes de se ouvir a CEO da TAP, que queria “toda a verdade, doa a quem doer”, até porque “o país nunca fica pior sabendo-se a verdade”, rematando com: “A verdade nunca nos deve preocupar”. (Só um irresponsável, permito-me notar, pode dizer esta última frase. A verdade deve preocupar-nos, até porque é aquilo que tem o mau hábito de nos pôr em causa. A não ser, é claro, que nos estejamos nas tintas para ela.) Ora bem, deve estar muito satisfeito, porque ficamos a saber várias coisas que não sabíamos, embora essas coisas revelem outras que perfeitamente já conhecíamos. Todas elas têm, directa ou indirectamente, a ver com a absoluta falta de ideias para o país de António Costa e o seu interesse exclusivo na manutenção do seu poder e do poder do PS.

Ficámos a saber, por exemplo, que gente do Governo e parlamentares do PS se reuniram com Christine Ourmières-Widener no dia anterior à sua audição na comissão de Economia da AR, isto é, a 17 de Janeiro. A reunião, ao que parece, foi feita sob o patrocínio conjunto do ministro das Infra-Estruturas, João Galamba, e da ministra dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes. O facto de a coisa representar um óbvio desrespeito pela comissão parlamentar não incomodou em nada um deputado que esteve presente nessa reunião, Carlos Pereira, um muito expedito defensor da serenidade do pessoal governamental. Gente obediente é outra coisa. Acha tudo particularmente normal e nem lhe passa pela cabeça que essa reunião secreta possa ser interpretada como um sinal de obter informações que permitissem desculpabilizar um ministro ou outro. Ficámos, portanto, a conhecer um caso concreto. Mas não sabíamos nós já muito bem que são esses velhos hábitos do PS e do Governo?

Ficámos a saber também que Fernando Medina, na noite anterior, uma noite de domingo, ao seu anúncio televisivo, em conjunto com João Galamba, da demissão de Christine Ourmières-Widener, havia pedido a esta que se demitisse. Não por razões de incompetência ou afins, mas porque – admire-se a franqueza – era a única maneira de o Governo sair mais ou menos airosamente da trapalhada causada pela indemnização de Alexandra Reis, que, havíamos sabido disso uns dias antes, fora negociada em detalhe com o pleno conhecimento do anterior ministro das Infra-Estruturas, o extraordinário Pedro Nuno Santos, o Cid campeador da “ala esquerda” do PS. E, tal como Pedro Nuno Santos de nada se lembrava antes da sua epifania e da posterior revelação pela CNN de uma troca de mensagens do seu secretário de Estado Hugo Mendes com Christine Ourmières-Widener, também Fernando Medina protesta o mais absoluto desconhecimento de tudo em que pudesse estar envolvido. Mas ficámos terça-feira a saber que o seu ministério tinha (como devia) reuniões regulares com a TAP.

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Que pensar? Antes de acusarmos Medina e Pedro Nuno Santos de terem a mentira fácil, ensaiemos um modelo da teoria dos sistemas. Há uma caixa preta por onde entram certos inputs e de onde saem, como resultado, certos outputs. O que se passa dentro da caixa, ninguém sabe. Talvez que o cérebro destes dois ministros funcione assim. Talvez seja uma caixa preta no interior da qual se passam coisas que eles próprios ignoram. É algo que não os qualifica excessivamente para o cargo, mas, pelo menos, evita que os julguemos retintos mentirosos. Vamos ficando a pensar isso. Mas também não é nada de novo. A quantos ministros de Costa, passados e presentes, não poderíamos nós aplicar o modelo da caixa preta? Isso, de resto, explicaria a qualidade dos seus outputs. O próprio Governo como um todo é ele mesmo uma caixa preta, cujos processos interiores são absolutamente opacos aos seus membros.

Só mais um exemplo, porque a ânsia pela descoberta da verdade de António Costa, que nunca conseguiu entrar dentro da sua própria caixa preta, foi terça-feira tão generosamente satisfeita que eu nunca mais saía daqui. O exemplo é o do muito activo ex-secretário de Estado Hugo Mendes, já célebre por ter resolvido, com o seu ministro Pedro Nuno Santos, o problema do aeroporto de Lisboa, de um modo infelizmente frustrado de cima. Então não escreveu ele à CEO da TAP, aconselhando-lhe a antecipação de um voo de Maputo para Lisboa para que o PR chegasse mais breve a Portugal? “Bom dia, sei que isto é um incómodo para ti, mas não podemos mesmo perder o apoio do Presidente da República. Ele tem-nos apoiado no que diz respeito à TAP, mas se humor dele mudar, tudo se perde. Uma frase dele contra a TAP ou o Governo, e ele empurra o resto do país contra nós. Ele é o nosso principal aliado político, mas pode transformar-se no nosso pior pesadelo”. A ideia do pedido já é boa. Que se lixasse a vida de todos os outros passageiros. Mas a justificação ainda é melhor: vamos tratar bem o volátil Presidente, que ele nos dá um jeito dos diabos para nos aguentarmos no poder. E, como a TAP é nossa, podemos e devemos fazê-lo. Que lindo que é! Mas que não se diga que o princípio geral nos era desconhecido. O Governo e o PS estão-se marimbando para os cidadãos e o seu único e exclusivo propósito – que não exige, repito, qualquer ideia para o país – é a manutenção do poder, custe o que custar. Para evitar pesadelos.

Esqueçamos, por momentos, a hipótese da caixa preta. E se se tratasse mesmo de uma tendência generalizada para a mentira fácil no Governo? Há que reconhecer que há indícios verosímeis dessa possibilidade. Como é que distinguimos a verdade da mentira? Não é preciso qualquer intuição especial para a distinção. Captura-se uma atmosfera e vão-se detectando, tentativamente, acordos e desacordos entre o que é dito e os factos, até se chegar a uma ideia mais ou menos clara e distinta, por mais provisória que seja. Ora, é bem verdade que o sentimento da mentira permeia o que ministros e secretários de Estado vão dizendo. É, somando tudo, uma hipótese verosímil, tão mais verosímil quanto a mentira é uma consequência natural de um ambiente em que nenhuma ideia, excepto a preocupação pelo poder, guia a acção. Mas trata-se, é claro, de uma mera hipótese. Pessoas dadas à benevolência tenderão certamente para o modelo da caixa preta, que dispensa a possibilidade da consciência.

Resta uma pergunta. O que é este PS? Em que é que o PS se tornou? A resposta é fácil: um magma deletério que segrega mediocridade, irresponsabilidade, falta de respeito e delinquência pura e simples. Vem a descer, o magma, a toda a velocidade por aí abaixo, dando cabo de tudo por onde passa. Se na Presidência da República estivesse alguém normal, o primeiro-ministro era demitido e convocavam-se eleições. Pessoalmente, deixei há muito de pensar (e, portanto, de escrever) o que quer que seja sobre o PR. Para ser útil pensar e escrever, tinha de possuir, dadas certas características muito conspícuas da personagem, uma sólida formação profissional numa área que me é alheia. De uma coisa, no entanto, tenho a certeza: sendo ele quem é, a lava vai continuar a descer da montanha, o PS vai continuar a rolar sobre nós e as senhoras e os senhores vão continuar, supimpas, ali.