“Aqui nos encontramos reunidos, portanto, os deportados… os deputados.” A primeira intervenção de Henrique de Barros como presidente da Assembleia Constituinte, na sessão inaugural de 2 de Junho de 1975, foi atropelada sem aviso prévio por uma gaffe reveladora. Os deputados não tinham sido “deportados”, mas sentiam que a revolução os estava a empurrar lentamente para as fronteiras do regime. A cada dia, surgiam de todo o lado os mais misteriosos problemas.
Primeiro, não havia microfones. Aí, Henrique de Barros foi paciente:
“Creio que, segundo me foi dito ontem, há apenas um total, de momento – espera-se conseguir mais –, de dezoito microfones [para 250 deputados]. Nesse sentido teria que apelar para a boa vontade e para a colaboração de todos, de maneira a passarem de mão em mão os microfones. Isso é tanto mais necessário quanto também não estamos, segundo me informaram, neste momento, suficientemente providos de contínuos, de funcionários que nos pudessem auxiliar nessa tarefa. Portanto, para facilitar os trabalhos, pediria esse auxílio no sentido de passar os microfones para a pessoa que estivesse mais próxima.”
Depois, não havia dinheiro. Aí, Henrique de Barros foi diplomático. A lei que deveria fixar o salário dos deputados em 10 contos andou convenientemente perdida entre as salas do Conselho da Revolução, a mesa do primeiro-ministro Vasco Gonçalves e as gavetas do Presidente da República Costa Gomes. Em Junho, os deputados não receberam nada. Em Julho também não. E em Agosto menos ainda. Alguns, como Jorge Miranda, começaram a ter dificuldades financeiras. Manuel da Costa, do PS, detectou o suave cheiro da conspiração: “Infelizmente, até entre nós (qual Judas?) há os que entendem ser esta Assembleia um entrave à revolução.” O problema só se resolveu depois de o Presidente da Constituinte ter feito algumas “diligências” que o levaram a “arrancar um despacho” que permitia o pagamento.
A seguir, não havia tempo. Aí, Henrique de Barros foi paciente. Imaginando talvez que estava em causa uma competição para o Guinness, originalmente foram dados apenas 90 dias à Assembleia para propor, debater e aprovar uma Constituição. Quando se percebeu o óbvio, ou seja, que esse calendário era lunático, o prazo foi prolongado por outros 90 dias, depois por mais 90 e finalmente por outros 30.
Por fim, não havia liberdade. Aí, Henrique de Barros foi inflexível. A 12 de Novembro de 1975, uma manifestação de milhares de trabalhadores da construção civil cercou o Palácio de São Bento, mantendo sequestrados no seu interior, além do primeiro-ministro, os deputados da Constituinte. O impasse prolongou-se por várias horas, durante as quais se foi esgotando a comida, a energia e a paciência. Nessa madrugada, alguns parlamentares encostaram a cabeça às secretárias para conseguirem dormir e outros, como Sottomayor Cardia, sentindo-se mais em casa, deitaram-se nos sofás dos Passos Perdidos. Olívio França, do PPD, teve de ser retirado de ambulância por se ter sentido mal.
A autorização para deixarem o edifício só chegou no dia seguinte, mas Henrique de Barros ficou retido: alguns manifestantes confundiram-no com o primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo e teve de voltar para trás. “Perfeitamente sereno”, aguardou no seu gabinete, demonstrando “uma coragem física e uma resistência anímica” que impressionaram quem o viu. Só foi libertado ao fim daquilo a que chamou “27 horas de cativeiro”, tornando-se assim no último deputado a abandonar o parlamento (juntamente com João Gomes, do PS).
O homem do equilíbrio
À partida, estas não seriam aventuras que se recomendassem a um homem de 71 anos. Mas, pensando bem, talvez tivessem sido esses 71 anos a permitir que as referidas aventuras não acabassem mal. No meio de uma revolução furiosa, o septuagenário Henrique de Barros conseguia acalmar os que tinham pressa e sossegar os que tinham medo. Dava garantias à esquerda: impedido por Salazar de se tornar professor catedrático, fora afastado durante dez anos da universidade e apoiara inúmeras candidaturas da oposição nos simulacros de actos eleitorais organizados pelo Estado Novo. E dava garantias à direita: irmão da mulher de Marcello Caetano, manteve-se amigo do último presidente do Conselho, que conhecera quando ambos estudavam no Liceu Camões, e teve um papel moderado no Conselho de Estado logo a seguir ao 25 de Abril.
O equilíbrio da personagem tornou-se no equilíbrio da instituição e impediu que a Constituinte se partisse de forma irremediável. A primeira grande polémica na Assembleia, por exemplo, acabou por se resolver de forma suave. O PCP queria que o parlamento se limitasse a aprovar uma Constituição, mantendo-se assim numa bolha, afastado da revolução; o PS, o PPD e o CDS insistiam que os deputados deviam ter a oportunidade de discutir o que se passava no País, aproveitando assim todas as oportunidades de combater o PREC (Processo Revolucionário em Curso). No final, PS, PPD e CDS venceram: instituiu-se um Período Antes da Ordem do Dia, que teria a rigorosa duração de uma hora, durante a qual seria possível falar de qualquer acontecimento. Mas o PCP teve uma escapatória: a dada altura, os deputados comunistas passaram a abandonar o hemiciclo durante esse período, para não legitimarem o debate com a sua presença (claro que a seguir ao 25 de Novembro, quando os vencedores passaram a vencidos, o partido mudou de ideias e começou a participar em todas as discussões).
Ao longo daqueles meses, Henrique de Barros só tomou declaradamente partido uma vez. A 19 de Agosto de 1975, abandonou momentaneamente a presidência para fazer um apaixonado discurso a defender os “homens corajosos, responsáveis, lúcidos, ávidos de aprender, abnegados, servidores do povo” e “revolucionários sem mácula” que tinham acabado de assinar o Documento dos Nove, que poria fim ao PREC. Mesmo nessas circunstâncias difíceis, e havendo no hemiciclo bancadas que espumavam só de ouvir o nome desses militares, Henrique de Barros falou sem contestações e acabou ao som de “aplausos prolongados”.
Muitos anos mais tarde, orgulhar-se-ia de ter atravessado os trabalhos da Constituinte sem se ter incompatibilizado com ninguém. Não era coisa pouca.
Fontes:
Diários da Assembleia Constituinte
“A Revolução e o Nascimento do PPD”, de Marcelo Rebelo de Sousa
“Da Revolução à Constituição”, de Jorge Miranda
“Henrique de Barros – Fotobiografia”, Comissão Executiva da Comemoração do Centenário de Henrique de Barros
“Quase um Século… Memórias Sintéticas”, de Henrique de Barros
“A Capital” de 13 de Novembro de 1975
“Diário Popular” de 13 de Novembro de 1975