Sozinhos ou acompanhados. Em silêncio ou em fúria. Por alguns minutos ou por vários dias. Quando tudo o resto falhava, era o derradeiro recurso: abandonar a sala e deixar o adversário a falar para as cadeiras vazias. Descrita desta forma, a estratégia até parece relativamente civilizada. Por isso, convém acrescentar que tudo acontecia no meio de um enorme pandemónio. Os acontecimentos da sessão de 10 de Julho de 1975, por exemplo, não podiam, mesmo usando toda a generosidade linguística do mundo, ser descritos como “civilizados”.
Nesse dia, o socialista António Arnaut subiu à tribuna para falar sobre a recente detenção de vários militantes do MRPP por ordem do Conselho da Revolução. Tratava-se, na prática, de uma denúncia das prisões arbitrárias que estavam a ser feitas durante o processo revolucionário. Depois de lembrar que, no Estado Novo, ele mesmo fora advogado, “sempre gratuitamente”, de vários “antifascistas”, atacou “actos e atitudes” que se passavam naquele momento e eram “gravemente ofensivos dos direitos fundamentais”. Pessoas que tinham passado “anos amargos nas masmorras da PIDE” estavam agora novamente na cadeia.
O estabelecimento deste paralelismo entre o antigo regime e o PREC era demais para os ouvidos revolucionariamente mais sensíveis. Os deputados do MDP/CDE foram os primeiros a levantarem-se das cadeiras. O socialista não os perdoou:
“António Arnaut: Vejo que os meus camaradas do MDP/CDE abandonaram a sala. O problema é deles, mas este camarada antifascista de que estou a falar militou no MDP/CDE…
(Apupos da Assembleia e das galerias.)
Presidente: Peço a atenção da Assembleia!… Peço a atenção da Assembleia!… Deixem falar o orador.
Vozes: Abaixo a reacção! Abaixo a reacção! Abaixo a reacção!
António Arnaut: Calma, amigos, calma!”
Já se tinha passado o momento em que um apelo à calma pudesse fazer algum efeito. Agora, foram os deputados do PCP que se puseram em pé, enquanto se ouviam gritos de “Fascista! Fascista!”, além de “aplausos” e “assobios”. O socialista repetiu a mesma acusação, agora com novos alvos: “Está na bancada do Partido Comunista um camarada que se acolheu várias vezes em minha casa. Agora que também os deputados comunistas, ou melhor, os deputados do Partido Comunista abandonaram a sala, aqueles que são contra a liberdade, eu só quero dizer, antes de continuar, que há naquelas bancadas do Partido Comunista gente que se acolheu em minha casa, que, nos duros anos do fascismo, procurou abrigo na casa modesta de um camarada antifascista como eles, e agora abandonam esta Assembleia, mostrando à evidência que não sabem sentir e compreender a palavra ‘liberdade’.”
Só faltava mesmo a UDP – mas não por muito tempo. Américo Duarte soltou o berro “Viva a classe operária!” e, debaixo de “manifestações vibrantes das galerias”, dirigiu-se à porta. No meio da confusão, vários deputados quiseram deixar um último registo da sua indignação: antes de saírem, passaram pela tribuna e ficaram parados mesmo em frente a António Arnaut, com menos de um metro a separá-los, e gritaram na sua direcção, esticando os pés para ganharem altura e o dedo indicador para ganharem veemência.
“É preciso é ter calma!”
A 5 de Agosto, tudo se passou de forma ainda mais agressiva. O rastilho foi aceso pelo discurso de outro deputado do PS, Lopes Cardoso. O socialista falou sobre a “onda de violências” a que se assistia no país. Condenou “sem ambiguidades” os “assaltos” às sedes de todos os partidos, mas depois dedicou especial atenção a tentar explicar as violências contra o PCP e o MDP/CDE. “Quem semeia ventos, colhe tempestades”, avisou Lopes Cardoso: “Os apelos à violência lançados pelo PCP e pelo MDP/CDE, as violências praticadas contra os nossos militantes encontraram agora a sua contrapartida na cólera popular que se manifesta em certas regiões do País contra os ‘aprendizes de feiticeiro’”.
A partir daqui, o Presidente da Assembleia começou a perder o controlo da sala, como se estivesse ao volante de um carro que estourasse um pneu a 200 km/h:
“Presidente: Peço o favor de não interromperem o orador. Tem a palavra.
(Gera-se grande burburinho.)
(Neste momento os Srs. Deputados do PCP e do MDP/CDE começam a abandonar a sala, passando em frente da tribuna dos oradores, onde proferem diversas palavras difíceis de registar.)
Presidente: O orador tem a palavra.
Vozes: Abaixo a reacção; Abaixo a reacção.
Presidente: Peço a atenção. Não podem interpelar o orador desta maneira.
(A agitação mantém-se durante algum tempo.)
Vozes: Fascista! Demagogo! Vai para o teu lugar…
Presidente: Peço o favor de manterem a ordem.
Uma voz: Abaixo a reacção!
Presidente: Os Srs. Deputados que quiserem sair façam favor de sair, mas não podem estar a interromper.
Uma voz: Rua!
(Ouvem-se palavras impróprias de serem registadas.)
Presidente: Se quiserem sair…
(As manifestações sucedem-se.)
Uma voz: É preciso é ter calma!
Presidente: Assim teremos que suspender a sessão.
(Em volta do orador, que proferia a sua intervenção na tribuna, gera-se grande confusão entre Srs. Deputados do PCP, MDP/CDE e PS.)
Presidente: Façam favor de se retirar. Os Srs. Deputados não podem interromper.
Lopes Cardoso: Não sabem ouvir.
(Continuam os conflitos e manifestações diversas.)
Presidente: Não podem interromper. Se quiserem sair, façam o favor.
Uma voz: Tenham calma!
Presidente: Vamos suspender a sessão?
(Os Srs. Deputados do PCP e do MDP/CDE abandonam a sala.)
Presidente: Não podem interromper. Continua no uso da palavra o deputado Lopes Cardoso.
Lopes Cardoso: Sr. Presidente, Srs. Deputados, há verdades que são duras de ouvir. Mas chegou o momento de falar verdade.”
Foi um episódio tão grave que os deputados do MDP/CDE suspenderam por vários dias a sua participação no plenário e nas comissões – só voltaram a entrar no Palácio de São Bento depois de uma reunião da comissão central do partido ter votado o seu regresso. Mesmo assim, mantiveram-se fora do hemiciclo durante o Período Antes da Ordem do Dia (PAOD). Esta decisão foi anunciada em plenário e, como logo a seguir iria ter início o PAOD, levou a nova saída antecipada. O Presidente da Assembleia alertou os restantes deputados que os eleitos pelo MDP/CDE tinham o direito de “abandonar a sala”, mas um dos contestatários gritou: “E de nunca mais cá voltarem!”
Não era só a extrema-esquerda que tinha o hábito de deixar as cadeiras vazias. Durante uma sessão, Adelino Amaro da Costa sentiu que a sua honra tinha sido “ofendida” por Herculano Carvalho, do PCP, e pediu a palavra para responder. Quando lhe foi negada essa possibilidade, todo o grupo parlamentar do CDS saiu do hemiciclo.
A dada altura, esta estratégia de protesto tornou-se tão comum que a 3 de Outubro, quando Américo Duarte anunciou aos microfones mais um dos seus abandonos, “uma voz” gritou, com falsa pena: “Vais-te embora todos os dias…”
Fontes:
Diários da Assembleia Constituinte
“A Revolução e o Nascimento do PPD”, de Marcelo Rebelo de Sousa
“Cenas Parlamentares”, de Victor Silva Lopes
“Da Revolução à Constituição”, de Jorge Miranda