Estávamos em Setembro de 1975 e as coisas não andavam a correr nada bem aos oficiais revolucionários. O coronel Varela Gomes sentia-se especialmente irritado. A 5.ª Divisão, de que ele fora um dos dirigentes principais, tinha sido responsável pela “dinamização cultural” e pela propaganda durante o PREC mas acabara de ser dissolvida. Vasco Gonçalves foi demitido do cargo de primeiro-ministro e afastado de qualquer outra posição de poder. E o Norte do país continuava a servir de base para todos aqueles que queriam acabar com o avanço da extrema-esquerda. No dia 5, Varela Gomes participou numa Assembleia do MFA, em Tancos, e teve o desprazer de se cruzar com dois jornalistas do Porto. Foi directo: “Quando chego ao Porto, dá-me para espirrar. Vocês lá falam um dialecto que não é a nossa língua. O Porto dá-me reumático quando lá chego”.
Era uma graça que escondia uma provocação. Mas o efeito da frase não foi o planeado. É que, se Varela Gomes estava farto do Norte, o Norte estava fartíssimo de Varela Gomes. Na Assembleia Constituinte, a resposta chegou ao fim de cinco dias. A 10 de Setembro, Fernando Roriz, deputado do PPD de Guimarães, pediu para falar sobre a “indisposição” do coronel.
Tinha muito para dizer: “Que fazer? Prescindir da presença garbosa do garboso militar ao Norte, ou prescindir do Norte? O coronel Varela Gomes vai ter paciência: o dilema (?) não permite duas opções. E se o Sr. Coronel tem dificuldade em suportar o esforço de um espirro e não possui capacidade de sofrimento para ultrapassar o incómodo de uma indisposição reumática, desista do Norte, o que pode fazer em perfeita paz de consciência, porque o Norte não vai sofrer com isso nem o gesto de um mero bocejo.”
Confrontado com “a marca inconfundível” de um “revolucionarismo delirante”, Fernando Roriz continuou:
“E se todos fôssemos tão sensíveis a ‘alergias’ geográficas como o coronel Varela Gomes, o que poderia acontecer? Pois aconteceria, inevitavelmente, que o Rossio seria uma sinfonia quotidiana de espirros e o Terreiro do Paço um cenário dantesco de cidadãos vergados à deformação de mazelas reumáticas.
(Risos.)
É que por Lisboa passam, todos os dias, centenas de homens do Norte que no Norte trabalham grande parte da riqueza que paga a distinção militar de todos os coronéis do País …
(Risos.)
… e que a Lisboa sobem tantas vezes para esmolar sem resultado a benesse de uma comparticipação para um caminho, para uma escola, para a luz e para a água, etc. (…) O que significa, sem margem para dúvidas, que espirro por espirro seria muito mais legítimo o nosso do que o do coronel Varela Gomes.
(Risos.)
Restava a questão do “dialecto”: “Nesta afirmação está claramente implícito o alarmante pressuposto de que para aquele militar, e muito provavelmente para a ex-5.ª Divisão, a revolução já germinou um dialecto que alguns milhões de portugueses não entendem e que, por isso mesmo, não é português, restando apenas saber se será russo ou cubano”. Touché.
A lição do “povo do Porto”
Era isto que o PCP temia – que os microfones da Constituinte se transformassem em armas de combate à revolução. Por isso, logo no começo dos trabalhos, tentara que a Assembleia se dedicasse exclusivamente a escrever a Constituição, fazendo de conta que nada se passava fora do Palácio de São Bento. No dia em que os deputados pudessem falar livremente sobre política, o hemiciclo deixaria de ser um anfiteatro universitário e passaria a ser uma arena.
Uma arena era precisamente o que os partidos democráticos procuravam. E foi isso que conseguiram. Dia após dia após dia, aproveitavam os debates da Constituinte para combater a extrema-esquerda militar e civil. O coronel Varela Gomes tinha sentido isso a 10 de Setembro. E voltaria a sentir no dia 12. O PPD não estava disposto a deixar que as pessoas se esquecessem do seu “linguajar político-constipatório”.
Além de ser um deputado social-democrata, José Augusto Seabra era professor e investigador de Linguística na Faculdade de Letras do Porto. Por isso, não teve grandes dificuldades em explicar algumas coisas a Varela Gomes. Primeiro, que a “língua portuguesa tivera o seu embrião no Norte”, sendo “originária do chamado falar galaico-português”. Depois, que a “tendência uniformizante” da língua que partiu de Lisboa teve por base, ela sim, “um dialecto regional”.
Mas, na realidade, nada disto importava. Varela Gomes não estava interessado nas minúcias da linguística – e José Augusto Seabra também não. Por isso, atacou: “A resolução linguística do Sr. Varela Gomes, Srs. Deputados, seria um simples caso risível de bom humor, com que nos poderíamos divertir e deliciar (…), se não viesse patologicamente acompanhada daquele mau humor que caracteriza os políticos reumáticos em maré de desgraça, quando lhes dá para espirrar.”
Faltava um aviso:
“O que vale é que, assim como o povo do Porto, rindo a bom rir, mas tomando o riso a sério, está disposto a dar, sem papas na língua, a um qualquer Varela Gomes a lição de língua que ele merece – começando por ensinar-lhe a dobrá-la,…
(Risos.)
…ao mesmo tempo que lhe tratará da constipação e do reumático –, também os que no Porto escrevem, e antes de mais os poetas, saberão dar a esse e a outros coronéis da linguagem a resposta que merecem, lembrando-lhes, quando vierem ao Porto: ‘Daqui houve nome Portugal’.”
O Norte, de facto, sempre tinha sido um problema indecifrável para os responsáveis pela propaganda da 5.ª Divisão de Varela Gomes. Quando durante o PREC lançaram as suas campanhas de dinamização cultural, que pretendiam ensinar a revolução às populações rurais, perceberam rapidamente que elas não tinham a intenção de aprender nada daquilo. Muitos foram escorraçados, tendo de fugir de forma desordenada. Os militares entraram no Norte com um espirro e acabaram por sair com uma constipação.
Fontes:
Diários da Assembleia Constituinte
“A Revolução e o Nascimento do PPD”, de Marcelo Rebelo de Sousa
“Cenas Parlamentares”, de Victor Silva Lopes