Qual bola, qual carapuça. Há um tempo para tudo e aquele não era para pensar em futebol. Iker estava sentado, à beira de uma secretária, mente concentrada, olhos numa folha de papel e mão a segurar um lápis. O esquadro, a régua e o compasso também ali estavam, para ajudar. A aula era de geometria e, numa qualquer tarde de inverno, o pequeno Casillas lá estava, enfiado na sala, a desenhar. Do nada, um homem entra na sala e diz, ao professor e à sala, que Iker fora chamado ao gabinete do diretor. Não era um sinal, como costuma ser, de quem meteu a pata na poça, porque quando lá chegou disseram-lhe que tinha de ir a correr para o Aeroporto de Barajas.
Disseram-lhe para esquecer a aula e ir rápido para casa. A pressa nem o deixou pensar, como hoje ainda o impede de se lembrar o que estava a desenhar. “Levaram-me a casa no autocarro da escola. A minha mãe estava frenética a fazer-me a mala. Mudei de roupa, agarrei num fato e num casaco, e fomos embora”, disse, recordando o dia em que o resgataram para ir à Noruega com o Real Madrid. “O Bodo Illgner estava lesionado, o Cañizares tinha levado uma pancada e precisava de mim para terceiro guarda-redes”, resumiu, depois, ao The Guardian. E lá foi ele, um niño da equipa de juniores, para Oslo, onde se sentou no banco de suplentes e cobriu-se de cobertores num jogo da Liga dos Campeões. Tinha 16 anos.
De raptado de uma sala de aula à primeira chamada à equipa principal do Real foi um tiro. Era 1997 e Iker, miúdo entre gigantes, lá esteve a ver o Real perder no frio nórdico, por 2-0. “Os outros miúdos não faziam ideia porque tinha abandonado a aula. Na altura não havia telemóveis. Hoje, onde quer que vás, está lá alguém à espera com uma câmara”, explicou. Anos, muitos anos depois, mais parecia que Casillas fora encontrado numa aula de religião, enquanto aprendia o que fazer para chegar a santo e ficar mais perto dos céus do que da terra — quando cresceu, deixou de desenhar, começou a usar as mãos para defender bolas e, em Madrid, passaram-lhe a chamar San Iker.
Conseguiu-o pois, em 1999, mudou de casa. Passou a ter morada fixa na baliza do Real e de lá não saiu. Desde aí até aqui vão 16 anos e 751 encontros feitos que, sozinhos, não contam a história de Casillas. Hombre, porque não são os jogos que fazem a vida de um guarda-redes. São as vezes que desvia, agarra, esmurra ou toca nas bolas que rematam à sua baliza. Iker fez muitas e foram essas bolas que não deram em golo que lhe valeram cinco ligas espanholas, duas Copas del Rey, cinco Super Taças de Espanha e três Liga dos Campeões. Com os anos o resto de Espanha foi atrás, como em 2010, quando Iker foi, de vez, elevado a santo ao esticar a perna que, na final do Mundial, não deixou que um remate de Robben desse um golo à Holanda.
O Real há tanto de Iker como a seleção espanhola tem de Casillas. O guardião que sempre veste mangas curtas (sim, é mesmo verdade) está com 162 internacionalizações, que lhe chegaram para levantar dois Europeus (2008 e 2012) e um Mundial (2010). Ele, que crescera a ver a La Roja prometer muito e ganhar pouco, ajudou a, durante anos, fazer do ganhar jogos algo banal na seleção. “Fizemos do difícil algo normal. Somos como o Tetris, as peças encaixam perfeitamente. Eu, em pequeno, via o Brasil ou a Alemanha a ganharem. Hoje somos nós. E quando tens nove ou 10 anos e cresces com isto… Os miúdos de hoje devem-se estar a passar”, desabafou, em 2012, ao El País, dias antes de jogar a final do Campeonato da Europa e de a vencer contra a Itália.
Iker Casillas era o maior entre os grandes. O portero que parava tudo, o homem das defesas impossíveis, dos milagres necessários, dos reflexos de ouro, das paradas que o instinto fazia aparecer. Tornou-se num mito, no tipo de guarda-redes que fazia os miúdos dizerem que, quando fossem grandes, queriam vestir luvas em vez de marcar golos. Porque cada vez que iam ao estádio ou se colavam, em casa, à televisão, viam um homem sereno, entre os postes, a salvar, uma e outra vez, o Real Madrid e a seleção espanhola. Da aula de desenho até ter, semana sim, semana sim, a braçadeira de capitão merengue, parece ter sido um instante. Ou un rato, como dizem os espanhóis.
A história é bem simpática para Iker, mas só o foi até janeiro de 2013, quando alguém chamado José Mourinho deixou de gostar de Casillas.
Aí o treinador começou a achar que Diego López era mais guarda-redes do que o titular dos titulares. O português ousou tocar no que ninguém antes ousara mexer. “É simples: gosto mais do Diego do que do Casillas. Não tenho qualquer problema pessoal com ele, não foi uma decisão para prejudicar alguém. Gosto mais de um portero que joga bem com os pés, gosto mais de um portero que sai bem dos postes, gosto de um portero que domina o espaço aéreo”, chegou a dizer Mourinho, apontando tudo o que via em Diego e não encontrava em Casillas. “Iker é um fenómeno entre os postes, faz paradas fantásticas. Mas gosto mais de um guarda-redes com outro perfil”, explicaria, também.
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Foi assim, de um dia para o outro, que Casillas deixou de ter lugar reservado na baliza do Real Madrid. “Em 2012, durante o Europeu [que a Espanha ganha] falávamos todos os dias”, recordou Casillas, anos depois, quando falou com o Canal+. “Não diria que havia uma má relação, mas sim discrepâncias. O respeito existia sempre”, acrescentaria, sobre a altura em que se falava, a toda a hora, da faísca que separava Iker de José. Este azar não gostava de estar sozinho e, cheirando isto, apareceu outro — semanas depois, o espanhol lesiona-se numa das mãos devido a um choque com Álvaro Arbeloa, durante um treino. Fica quase dois meses parado.
Nas duas épocas seguintes, uma ainda com Mourinho e outra já com Carlo Ancelotti, o guardião nunca passou dos 30 jogos — 29 em 2012/2013 e 24 em 2013/2014. Casillas, habituado a ser protagonista, passou a ficar com o papel secundário, o que o mandava aguardar no banco de suplentes e apenas entrar em cena nas partidas das taças. Não era a primeira vez que levava com esta malapata — a meio de 2001/2002, também Vicente Del Bosque o trocara, do nada, por César. Até essa se lesionar na final da Liga dos Campeões e Casillas ter que entrar para a ganhar. Em 2014 aconteceu algo parecido.
Quando tens o talento inato desde pequeno, não o vais perder. Tens é que treiná-lo um pouco todos os dias. Não preciso de ir ao ginásio fazer 40 abdominais ou mil flexões. Já o fiz, mas não me cai bem. Não tenho um corpo escultural, mas tenho outras capacidades que outros não têm. Umas pernas fortes desde pequeno, por exemplo, que sempre me fizeram dar grandes saltos.
Além da Copa del Rey, Iker fica com os jogos da Champions e é ele que na final da Lisboa defende a baliza da equipa que vence a competição pela décima vez na história do Real. “Essa temporada [2013/2014] foi a que joguei menos tempo, em que tive menos rotinas, e recordo-a como a melhor. Foi a que mais me obrigou a ir buscar forças e a pensar jogo a jogo. Em setembro, quando o mister [Ancelotti] me diz que só vou jogar as partidas das Copas [Taça e Liga dos Campeões], disse: ‘Bem, oxalá que corra tudo bem.’” E correu. Mas aí já ouvia assobios e gritos de adeptos a chamarem-lhe topo.
Essa a palavra espanhola para toupeira. Desde 2012 que, de vez em quando, Iker ouve e lê coisas que o dão como um dos jogadores do Real Madrid que conta histórias, detalhes, conversas e informações a jornalistas. Tudo começou, lá está, mais ou menos quando Mourinho o passou a sentar no banco. “Dói porque está aqui desde os nove anos, já conseguiste coisas muito boas, já ganhaste tudo com o Real Madrid, e, mesmo que o público seja soberano, dói-te. Hombre, há anos que se passa uma série de coisas que te fazem pensar”, confessou. Nada melhorou quando, mesmo suplente no clube, Casillas viajou para o Brasil, em 2014, para ser titular no Mundial. A Espanha que, durante seis anos, fizera o difícil parecer fácil ruiu como um dominó de peças que não pode ser travado. A seleção perdeu dois dos três jogos que fez, um deles por 5-1, contra a Holanda, no qual o guarda-redes até admitiu ter feito “a pior atuação da vida” pela seleção.
Se as críticas fossem teclas de um piano, a de Casillas seria a mais carregada. O guarda-redes ouviu das boas, viu dedos a serem-lhe apontados e bocas a fazerem do espanhol o exemplo de todos os males — do envelhecimento de uma geração, da perda de fome de uma equipa campeã, do acomodamento. Iker manteve-se calado. “Parecia que tudo era nefasto, parecia o culpado de tudo, parecia a peste, era o problema que todos queriam erradicar”, lamentou, meses depois do Mundial, em outubro, o ainda hoje capitão da seleção. Já decorria 2014/2015 e Casillas voltava a fixar morada na baliza do Real. O clube vendera Diego López ao AC Milan, livrara-se da pedra no caminho de Iker e nem a chegada do costa-riquenho Keylor Navas, considerado o melhor guarda-redes da La Liga na época anterior, o beliscou. Os assobios, aqui e ali, contudo, foram aparecendo. Os merengues não vencem nada e, para Casillas, a época acaba como sempre — com o guarda-redes a não querer ir a lado nenhum.
Mas o clube prega-lhe uma partida. Diz-lhe — e por “diz-lhe” queremos dizer Florentino Pérez — que não pretende que o capitão se vá embora, mas avisa-o que vai contratar outro guarda-redes. O alvo é David de Gea, o também espanhol do Manchester United que já andava à caça da sombra de Iker pela seleção espanhola. O Real faz um “queremos que fiques, mas vamos comprar um guarda-redes para ser titular” e a lenda merengue não gosta. Isto chega aos ouvidos de Julen Lopetegui, o basco que passara a carreira de luvas vestidas e, já como treinador, dera ordens a Casillas na seleção, durante o Mundial de 2002. O técnico do FC Porto pega no telefone e, por duas vezes, liga a Iker. As chamadas servem para o convencer a trocar os merengues pelos dragões. O guardião acha piada à ideia. Seguem-se conversas, acordos, trocas e baldrocas nos euros para o Real manter elevado o salário da lenda que decidira tirar do clube — tal como o fizera com Raúl ou Michel Salgado, por exemplo.
E daí voltou a ser un rato: o FC Porto acertou as agulhas com o Real Madrid, Casillas concordou receber, por ano, 5 milhões de euros dos dragões (mais uns 2,5 dos madridistas), e os portistas ficaram com quem, aos 34 anos, ainda é um dos melhores guarda-redes do planeta. E mais, porque Iker torna-se no quinto Campeão do Mundo a vir jogar para Portugal, depois de Branco (também no FC Porto), Ricardo Rocha, Aldair, (ambos no Benfica) Anderson Polga (Sporting) e Capdevila (Benfica). Mas San Iker não pretende que o olhem, ou o lembrem, como alguém que tinha jeito para dar e vender na baliza. “Não me sinto o melhor do mundo, mas digo-lhe uma coisa: prefiro que me recordem como uma boa pessoa do que como um bom, ou mau, portero“, explicou, dias antes de jogar a final do Mundial de 2010, na África do Sul. Com 34 anos chega a Portugal para trabalhar nisso.