É uma das maiores divergências entre os juizes que absolveram João Rendeiro, ex-presidente do Banco Privado Português (BPP) e a acusação. O Ministério Público (MP) fala em prémios ilegais de 5,5 milhões de euros, o tribunal entende que o dinheiro pertence aos gestores. O Tribunal da Relação de Lisboa decidirá quem tem razão.

No recurso apresentado pelo MP, que o Observador tem vindo a notíciar em exclusivo esta tarde, fica claro que a acusação não se conforma com a absolvição de João Rendeiro, ex-presidente do Banco Privado Português (BPP), de Paulo Guichard e de Salvador Fezas Vital, ex-administradores do BPP, do crime de burla qualificada. O MP insiste que os arguidos enganaram cerca de 100 investidores, provocando-lhes um prejuízo de 40 milhões de euros. Num recurso, com uma linguagem forte, o MP solicitou à Relação de Lisboa que revogue a sentença e a substitua por uma nova que condene os arguidos a prisão efetiva numa pena “superior à média da média da moldura penal – ou seja, superior a 5 anos de prisão”. A moldura penal do crime por burla qualificada, atendendo que o alegado prejuízo patrimonial atingiu um valor elevado, varia entre os dois e os oito anos de prisão.

Um dos pontos mais contestados pelo MP prende-se com a atribuição de prémios pelo BPP a João Rendeiro, Paulo Guichard e Salvador Fezas Vital no valor de 5,5 milhões de euros. Prémios esses que permitiram aos gestores participarem, a título individual, no aumento de capital social da Privado Financeira.

A primeira razão da contestação do MP prende-se, segundo os procuradores que investigaram o caso, com a génese ilegal dos mesmos. Em primeiro lugar, os prémios foram auto-atribuídos pela Comissão Executiva do PP a titulo de antecipação pelos resultados do exercício de 2007.

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A prova, na óptica do MP, de que os prémios não eram devidos, resulta do facto de a Comissão de Vencimentos do BPP, liderada pelo accionista Stefano Savioti, não ter aprovado os mesmos e dos resultados do banco serem muito inferiores aos que estavam espelhados no balanço oficial de então – documento esse que foi dado como falso pela Comissão Liquidatária e pelo Tribunal do Comércio, entre diversas entidades, por não reflectir as contas reais do banco.

O próprio Savioti foi taxativo sobre esta matéria, quando questionado em julgamento sobre se teve conhecimento antecipado e autorizou os referidos prémios:

A Comissão de Vencimentos não autorizou [e] tinha obrigatoriamente anualmente de aprovar os vencimentos e os prémios. Inclusive, eu pedi também esclarecimentos (…) aos auditores, para verificar se tinha havido algum pagamento de prémios que nós não tínhamos autorizado. Os auditores, inicialmente, disseram que iriam verificar, depois passado uns tempos, e por várias insistências, acabaram por dizer para nós pedirmos à administração. E a administração respondeu-me a dizer que não ia responder. A última carta foi uma semana antes da liquidação… Não da liquidação! Da intervenção do Banco de Portugal.”

O empresário, que era um dos principais accionistas da Privado Holding (sociedade de controlo do BPP), disse ainda que os prémios não eram devidos, acrescentando que as suas dúvidas sobre a fiabilidade das contas apresentadas pela administração de Rendeiro já tinham começado em 2007.

“Em 2007, eu já tinha dúvidas que os resultados do banco fossem correctos. Ou seja, que o balanço do Banco espelhasse a situação real do banco. E indaguei junto do conselho de administração. O conselho de administração indicou que podíamos falar com a Deloitte, que eram os auditores. Tivemos uma reunião com a Deloitte, e houve algumas explicações que nós não aceitámos. Por isso, não só nós não aprovámos os prémios de 2007, mas recusámos inclusive definir as remunerações para 2008, sem ter toda a informação necessária. O que é que se passava nas contas de 2007? Por exemplo, tinha havido um pagamento de cerca de 8 milhões de euros de correcção da matéria tributável às Finanças. E não tinha havido provisões sobre este pagamento. Portanto este pagamento era considerado como um crédito, e não como um custo, que podia eventualmente ser recuperado. Bom, esta diferença de 8 milhões rebentava com todos os prémios.”

Certo é que, sem que a Comissão de Vencimentos soubesse, João Rendeiro, Paulo Guichard e Salvador Fezas Vital avançaram mesmo com os prémios. Num email enviado a Tiago Ferreira a 25 de Fevereiro de 2008, Fezas Vital dá ordens ao então director financeiro  do BPP para que os prémios sejam processados, de forma a que os administradores possam participar no aumento de capital da Privado Financeira.

Segundo o MP, João Rendeiro utilizou ainda outra forma de financiamento da sua participaçao na operação da Privado Financeiras: vendeu “uma coleção de obras de arte que foi parar à titularidade… do próprio BPP, depois de passar por uma galeria de arte numa espécie de volta de 360 graus…  E, acrescente-se, dando a ganhar a esta última uma quantia muitíssimo interessante – decerto provinda do BPP – e com a vantagem de não ter tido de ‘mexer uma palha'”, lê-se no recurso a que o Observador teve acesso.

Para o tribunal, contudo, o investimento realizado pelos administradores foi feito com fundos próprios e prova que os gestores agiram de boa-fé, pois também arriscaram e perderam o seu capital como os restantes arguidos.”

Conclusão que é contestada pelo MP, que classifica os prémios auto-atribuidos de ilegais e entende que os fundos pertenciam ao banco e não aos arguidos:

Na prática, os únicos investidores que não saíram prejudicados com o aumento de capital de 2008… foram os próprios arguidos. O Banco foi intervencionado pelo Estado pouco depois mas, antes disso, haviam investido, sim, mas com os prémios antecipadamente pagos, decisão por eles mesmos tomada e absolutamente irregular, por se tratar de montantes a que, de todo, não tinham direito, dado o resultado já deficitário do banco em 2007 (obviamente bem ocultado pelos mesmos arguidos em contabilidade criativamente falseada).

“Hoje em dia, somos mais sólidos do que os bancos”

Mais uma vez, Stefano Savioti foi uma testemunha fundamental para o MP. O seu testemunho, aliás, é um dos mais citados ao longo de todo o recurso, o que diz bem da importância, na óptica da acusção, das suas declarações. Além de ter sido um dos primeiros accionistas da sociedade que detinha o BPP a questionar a gestão de João Rendeiro, Savioti é um investidor financeiro com larga experiência.

No seu testemunho em julgamento, assumiu a sua “preparação financeira superior ao normal investidor”, acrescentando que este último “confia no banco”:

Na brincadeira, às vezes quando um administrador me pede o meu aval, eu digo que ‘eu dou aval se você me der o seu’. Porque… Não sou de menos do que um banco. Aliás, hoje em dia, somos nós mais sólidos do que os bancos.”

A sua experiência nos mercados fez com que tivesse insistido, no verão de 2007, com João Rendeiro para que a Privado Financeira vendesse as acções do BCP com uma mais-valia superior a 60%, mas não teve sucesso. Para o tribunal perceber melhor como a gestão da Privado Financeira foi diferentes daquela a que estava habituado, Savioti deu mesmo o exemplo de outro veículo que investia em ações da Galp:”

Também participava num outro veículo (imperceptível) e insisti na venda das acções da Galp, que tinham sido compradas a 6€ e foram vendidas a 18€. O problema é que o dinheiro da venda, que foram 53 milhões [de euros], foram aplicados em depósitos no Banco Privado Português e portanto a perda foi total.”