É uma das partes mais polémicas do recurso apresentado pelo Ministério Público (MP) no Tribunal da Relação de Lisboa a solicitar a condenação a prisão efetiva de João Rendeiro, ex-presidente executivo do Banco Privado Português (BPP), Paulo Guichard e Salvador Fezas Vital (ambos ex-administradores do BPP) pelo alegado crime de burla qualificada no caso da sociedade Privado Financeira. Para demonstrar o “sentimento de impunidade” e a “desfaçatez” de Rendeiro e de Guichard, o MP recorda a tentativa da parte dos arguidos de utilização dos alegados contactos políticos de José Miguel Júdice, advogado de Rendeiro e ex-presidente da Assembleia Geral da Privado Holding (sociedade de controlo do BPP), para uma eventual ação de lobbying que pudesse favorecer as sociedades veículo que o banco controlava. A ideia não avançou mas ficou o registo escrito das intenções de Rendeiro e Guichard.

Contactado pelo Observador, José Miguel Júdice diz-se “ofendido” na sua “ética profissional” e apela à intervenção da procuradora-geral da República para que “ponha cobro a este tipo de atitudes” que considera dolosas ,”a bem do MP e da sua elevada missão, do sistema judicial como um todo e do Estado de Direito que as profissões jurídicas devem defender”.

No centro da questão, está uma ata do conselho de administração da PCapital (acionista do veículo Privado Financeira, sociedade que está na origem do processo criminal cuja sentença o MP quer que a Relação corrija), que já tinha sido recordada durante o julgamento do caso da Privado Financeira que absolveu João Rendeiro e os restantes arguidos. Na mesma, referente a uma reunião ocorrida no dia 4 de Setembro de 2007, ficou expresso o seguinte texto: “Caminho ‘político’: falar com o dr. José Miguel Júdice para indicar contactos preferenciais para ação de lobby, por forma a avaliar a possibilidade de “orientar” a alteração do regime fiscal inerente à dissolução de sociedades.”

Para o MP esta ata, relativa a uma reunião em que estiveram presentes João Rendeiro e Paulo Guichard, revela a “desfaçatez com que os arguidos [Rendeiro e Guichard] actuaram ao longo de anos, o sentimento de impunidade e, bem assim, a sensação de que poderiam influenciar até o próprio poder político de acordo com os seus interesses”. O contexto do “caminho político” prendia-se com uma necesidade que BPP tinha de “ultrapassar o problema do impacto fiscal que decorre da liquidação das sociedades-veículo no final de cada operação”. Daí terem pensado em recorrer ao poder do legislador.

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Os três procuradores do MP fazem questão de dizer, referindo-se a José Miguel Júdice, que “não nos passaria pela cabeça que um Bastonário da Ordem dos Advogados transigisse com tal propósito”, acrescentando: “Certo é, porém, que os arguidos, que o conheciam bem – afinal de contas, era o Presidente da Assembleia Geral do Banco –, acreditaram que disso seria capaz…o que diz alguma coisa da sua forma de pensar. Enfim, se o caso não teve seguimento, é decerto porque, entretanto, terá imperado o bom senso ou o respeito pela legalidade.”

Júdice expressa “revolta”

Confrontado e instado a comentar esta parte do acórdão, Jose Miguel Júdice afirmou que só poderia falar com a autorização da Ordem dos Advogados.

Num texto enviado ao Observador, intitulado “Deus enlouquece os que quer destruir”, o advogado que patrocina a defesa de João Rendeiro juntamente com o seu colega João Medeiros, informa que o mesmo “é escrito para defesa da minha honra profissional e foi previamente autorizado pela Ordem dos Advogados”.

José Miguel Júdice começa por afirmar “que, em mais de 40 anos de profissão, nunca li alegações de um magistrado do MP a atacar de forma tão grave um advogado”, acrescentando de seguida que sabe que “algum MP investiu tudo na tentativa de fazer condenar ex-administradores do BPP pelo crime de burla qualificada. Percebo que o desespero com o resultado seja mau conselheiro e que a falta de argumentos para contrariar uma decisão judicial unânime e agora em recurso possa conduzir alguns a abusos e um vale tudo sem ética nem respeito. Mas nunca pensei que magistrados pudessem descer tão baixo”.

Lisboa, 12/02/2014 - Início do julgamento do processo crime contra os antigos administradores do Banco Privado Português (BPP). João Rendeiro à chegada do Tribunal com o advogado José Miguel Judice ( Natacha Cardoso / Global Imagens )

( Natacha Cardoso / Global Imagens )

João Rendeiro, ex-presidente do BPP, acompanhado dos advogados José Miguel Júdice e João Medeiros à chegada ao tribunal para a primeira audiência de julgamento do caso Privado Financeira

O sócio fundador do escritório PLMJ diz que “ainda não” foi “notificado do recurso do MP”, argumentando que o episódio recordado no recurso, que classifica de “pseudo facto”, “nada tem a ver com ‎o crime de burla qualificada em que o MP não conseguiu fazer a prova. E, recordo, apesar do que um leitor desse texto lamentável pudesse concluir, não sou arguido no processo em recurso, mas ‘apenas’ advogado de um dos arguidos.”

Júdice não deixa de classificar de “sugestão insensata” o texto que consta da acta da PCapital mas faz questão de enfatizar, como o próprio MP diz no recurso, “não teve qualquer sequência.

“O que de forma insuportável escrevem estes magistrados do MP (que envergonham os seus pares) refere-se a uma sugestão insensata feita por alguém, que nunca me foi comunicada, que desconhecia até ser exibida já em desespero pelo MP no julgamento, e que na ocasião se provou que não teve qualquer sequência”, afirma.

No que diz respeito ao lobbying, o ex-bastonário dos advogados, diz que “é conhecido que há mais de 30 anos defendo que a atividade de lobby deve ser regulamentada e que entendo que ela é incompatível com a profissão de advogado”. José Miguel Júdice assegura igualmente que “durante a minha longa vida profissional nunca fiz qualquer ação de lobby. Afirmar o contrário e escreve até que os arguidos, «que o conheciam bem,… acreditaram que disso seria capaz…o que diz alguma coisa da sua forma de pensar» é ofender-me de forma dolosa: o magistrado alegador bem sabe que isso me ofende, pois na audiência eu já reagira com muita intensidade à insinuação agora explicitada. E ofender-me numa das coisas que considero mais ‎sagradas: a minha ética profissional. Nem para advogados a defender clientes se admite que valha tudo. Para um magistrado o grau de exigência tem de ser ainda mais elevado”, afirma o advogado.

Para José Miguel Júdice, o facto de o MP ter escrito as palavras acima citadas faz parte de uma “estratégia de criar alarme social na opinião pública (e por isso mais uma vez os media conhecem as alegações da acusação derrotada antes dos advogados dos recorridos) para que das calçadas que se desejam ao rubro cheguem os ecos à Rua do Arsenal”, escreve o advogado, numa referência à rua onde está localizado a sede do Tribunal da Relação de Lisboa.

“Felizmente não há magistrados judiciais como este magistrado do MP. Sei por experiência de 40 anos que o objetivo que se pretende com esta ofensa cometida a frio e de forma estratégica não terá sucesso e será evidentemente até contraproducente”, continua Júdice, acrescentando: “Mas o povo diz, com razão, ‘só não se sente quem não é filho de boa gente’. Devo a meus pais o que melhor tenho para mostrar de mim. Não podia por isso deixar sem reação a publica ofensa à honra de quem mais não faz do que defender os seus clientes e o Estado de Direito”, conclui.

Como súmula da sua posição, José Miguel Júdice recorda que foi “bastonário da Ordem dos Advogados, como o texto citado refere. E também por isso – pois quando se ofende um advogado na defesa dos seus clientes se ofendem todos os outros – não podia deixar de expressar a minha revolta.”

E faz um apelo: “Peço publicamente à senhora procuradora-geral da República que ponha cobro a este tipo de atitudes, a bem do Ministério Público e da sua elevada missão, do sistema judicial como um todo e do Estado de Direito que as profissões jurídicas devem defender”.

José Miguel Júdice assegura ao Observador que não vai prestar mais declarações públicas sobre este tema, reservando-se apenas para a resposta ao recurso do MP que a defesa de João Rendeiro apresentará em breve no Tribunal da Relação de Lisboa.

Veja em anexo a declaração na íntegra enviada por José Miguel Júdice para o Observador.

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