O relvado estava cheio de monstros. Olhava-se para o lado e estavam éne senhores com muitos anos a proteger a baliza. Voltava-se o olhar para o outro e via-se um argentino, cabelo impecável, cheio de brilhantina e cola no pé esquerdo, a transbordar classe. E à frente aparecia um dinamarquês loiro que era notícia quando falhava um passe. Manuel Sanchíz, Quique Flores, Fernando Redondo, Michael Laudrup, era só craques, todos carregadinhos de experiência no futebol. Mesmo assim, estavam curiosos para ver o que aí vinha e Fernando Hierro lembra-se bem disso. “Nos primeiros 15 minutos ficámos todos a olhar, a ver o que aí vinha. E pensámos: Madre mía, que és esto?”, recorda, testa franzida, enquanto reproduz a cara de espanto que fez no dia em que um menino, pela primeira vez, foi treinar com os graúdos do Real Madrid.
Esse rapazola era Raúl González Blanco. Tinha 17 anos, nem uma ponta de barba na cara e a apoiava-se em duas pernas bem magras. Chegaram-lhe para fazer cuecas aos senhores da defesa, reclamar a bola para o pé esquerdo e dar o suficiente nas vistas para não mais sair dali. “Era muito ambicioso, muito atrevido, quase até ao ponto da insolência”, descreve-o Jorge Valdano, o treinador que, semanas depois, sentou o trintão Emilio Butragueño para estrear o adolescente. Era outubro de 1994 e, daí até abril de 2010, este avançado tornou-se capitán, ganhou campeonatos (seis), super taças (cinco), Ligas dos Campeões (três) e marcou 323 golos pelo Real Madrid. Quando se foi embora despediu-se como o melhor marcador de sempre do clube.
Quando Raúl disse adeus aos merengues já havia lá no meio um português a acenar-lhe de volta. Tinha chegado há menos de um ano e não sabemos que impressões causou no primeiro treino. Porque não era nem miúdo, nem desconhecido, nem um qualquer. Mas terão sido das boas, pois quando Cristiano Ronaldo se despediu de Raúl, no final da época 2009/10, já tinha 33 golos marcados pelo Real Madrid. O espanhol foi-se embora, o português manteve-se por ali e, cinco temporadas e uns pozinhos depois, uma lenda apanhou outra — Ronaldo marcou esta quarta-feira dois golos ao Malmo, na Liga dos Campeões, e igualou Raúl na lista dos homens merengues que mais bolas remataram para dentro de uma baliza. Depois de fazer um hat-trick a 15 de setembro, contra o Shakthar, e ficar a dois golos do espanhol, estava-se mesmo a ver que ia bater o recorde no Santiago Bernabéu. Afinal, tinha dois jogos logo a seguir, um deles contra o Granada, equipa à qual marcara cinco golos nos 9-1 com que o Real vencera a equipa do sul de Espanha, na época passada.
Cristiano Ronaldo correu cheio de pressa atrás deste recorde, mas demorou 15 dias e três jogos até voltar a marcar. Conseguiu-o esta quarta-feira, na Champions (pelo meio chegou aos 500 golos marcados na carreira), e por fim confirmou que não é homem de grandes demoras — precisou de menos seis anos para fazer o que Raúl González fez em 16. E entre as linhas desta frase há mais coisas que o espanhol fez e o português não: Raúl jogou 741 partidas pelo Real Madrid enquanto Ronaldo vai em 305; o primeiro fixou o recorde com 33 anos, o segundo bateu-o aos 30; e Cristiano apenas teve uma época em que não marcou mais de 50 golos, enquanto Raúl só fez mais de 30 uma vez. “O Cristiano é incrível e só demorou seis anos a atingir isto, a ter uma média de 50 golos por época, e tudo o que consegui foi chegar a uma de 20. Daqui a uns meses vai bater o meu recorde”, dizia o espanhol, a meio de junho, já bem ciente do que aí vinha.
Depois havia uma diferença que deixou de haver quando o espanhol disse adiós e o português tomou uma decisão: largar a linha para ir atrás dos golos. O Cristiano do Real Madrid é bem distinto do Ronaldo do Manchester United e isso começou a notar-se quando o CR9 passou a CR7 — o português vestiu o número 9 durante a primeira temporada porque o 7 sempre fora do espanhol. Cristiano deixou de querer driblar adversários, desdobrar os pés em fintas, inventar cruzamentos desde a linha e voltou-se mais para a baliza. Passou a rematar, a morar mais dentro da área, a pedir a bola em sítios onde a pudesse chutar logo à baliza e os golos começaram a acumularem-se. O extremo das fintas transformou-se numa espécie de avançado viciado em marcar e os golos apareceram às dezenas: 53 em 2010/11, 60 em 2011/12, 55 em 2012/13, 51 em 2013/14, 61 em 2014/15.
Estes golos, combinados aos 33 que marcou na primeira época e aos nove que já leva esta temporada, dão 323. É a conta que Ronaldo fez para se tornar o melhor marcador marcador no ativo de duas equipas, o Real Madrid e a seleção portuguesa, onde vai com 55 golos em 122 internacionalizações e está a ficar, cada vez mais, um bicho papão de títulos, recordes e proezas. Além dos golos, Ronaldo já conquistou duas Ligas dos Campeões, três Bolas de Ouro e quatro Botas de Ouro europeias. E calma, há mais, porque o primeiro golo que Cristiano marcou esta sábado ao Granada também fez com que chegasse aos 500 na carreira. Já foi melhor marcador em Espanha e Inglaterra, foi escolhido para as equipas do ano de tudo e mais alguma coisa e houve alguém que sempre lhe foi dando uma ajudinha.
Esse alguém é Lionel Messi, o único ser deste planeta que, como Ronaldo, se está sempre a armar em extraterrestre e não se farta de marcar golos e ser melhor que os outros. É com ele que o português se pica, é dele que se está constantemente a tentar distanciar. Um puxa pelo outro e esta batalha onde mais ninguém consegue entrar faz, há anos, com que ambos vão jogando e marcando cada vez mais. Se não existisse este Messi também não havia este Ronaldo e uma das coisas que falta ao português é conseguir perder a companhia do argentino lá no alto, onde só eles chegam. E depois falta-lhe outra coisa, que o próprio já admitiu — conquistar títulos com a seleção nacional. O resto já ficou quase todo feito este sábado quando, cinco anos depois de dizer hasta luego a Raúl González, lhe disse adiós de vez.
https://www.youtube.com/watch?v=F1zx3bYd6HM
(Se quiser entretenimento para os próximos 20 minutos, este vídeo tem os primeiros 300 golos que Ronaldo marcou pelo Real Madrid.)