Não foi encontrado a tocar num bar ou numa sala de concertos. Não foi descoberto a cantar numa esquina, a troco de dinheiro. Escondeu-se na sua casa e sem os seus pais a sua história poderia ter sido muito diferente. Terá ajudado o facto de o seu pai ser presidente da Câmara do Porto? Certamente não tanto como a dedicação da sua mãe, que ligou para a Valentim de Carvalho sem o conhecimento do filho. Do outro lado atendeu António Pinho, na altura funcionário do sector de produção da editora. “Em casa, ele passava os serões com músicos amigos, na cave (ou seria um sótão?), e faziam as suas loucuras. Os seus blues e todas aquelas experiências que se fazem naquela idade, mais ou menos inconsciente. E ele dizia aos pais que estudar era complicado, era bom era a ser músico”, lembra António Pinho ao Observador.
Traçaram o plano para o encontro secreto. Emília Veloso, a mãe de Rui Veloso, obrigou Pinho a prometer nunca contar ao filho nada sobre aquele encontro. Pegou nas duas bobines com gravações do filho e partiu para Lisboa. “Já tinham letras do Carlos Tê mas eram em inglês. Com a excepção de uma, chamada “Chico Fininho”, com letra e música da autoria do letrista. Apenas um devaneio nocturno, com umas cervejas e uns cigarros à mistura. Eles nunca quereriam que estivesse no disco”. A mãe de Rui Veloso queria saber se o filho tinha alguma hipótese. “A senhora perguntou-me: ‘Então, o que acha? Acha que o devemos empurrar para música ou obrigá-lo a estudar?’ (risos) E respondi-lhe. ‘Bem, se me é permitido dizer, como também gosto muito de música, eu acho que temos aqui uma pessoa com grandes possibilidades’”.
Rui não sabia, mas voltaria do Interrail com a carreira traçada. António Pinho só tinha de inventar uma justificação para o contacto, para honrar o acordo que fez com a mãe do jovem artista. Resolveu fingir que existia um burburinho em relação a ele que tinha ido de boca-a-boca até Lisboa. Assim, quando Rui chegou de viagem, recebeu, finalmente, o contacto de uma editora. “Convidei-o para vir a Lisboa, para ouvir as coisas dele. Ouvi as bobines pela segunda vez. (risos) Fingi que não as conhecia e continuei a fingir durante 25 anos”.
Só há dez anos é que Rui Veloso viria a descobrir que foi a mãe quem apadrinhou o seu começo de carreira. Na altura, deve ter achado que tinha feito jackpot: depois da ida à Valentim de Carvalho, editora quis assinar imediatamente. “Ouvimos as coisas e fizemos logo uma pré-selecção daquilo que se tornaria num grande disco. Mas com uma condição: o tal Tê de quem falávamos, o letrista que passava lá as noitadas, teria que escrever letras em português para estas músicas que eram muito boas.”
A dupla Veloso-Tê estava com alguma relutância em relação a esta mudança. “A Valentim de Carvalho não iria contratar um artista que cantasse em inglês, nem fazia o mínimo sentido aquele disco em inglês”, recorda António Pinho. Carlos Tê e Rui Veloso lá cederam. “Aquilo que para o Tê se chamava ‘I’m a soccer rocker’ passou a chamar-se ‘No domingo fui às Antas’. O Tê não só era um bom letrista em inglês como veio a revelar-se um fabuloso letrista em português. Pegou nas ideias iniciais, aceitou o desafio desconfiado que a coisa ia correr mal e fez oito letras em português”.
“O Jaime Fernandes — nunca mais me vou esquecer disto — encostou-se ao meu ouvido e disse ‘O puto faz-se’. É uma coisa muito portuguesa e paternalista, que caiu bem. Eu, na altura, achava que o puto já se tinha feito.”
António Pinho saiu da Valentim de Carvalho mas continuou ligado a Rui Veloso. O elo de confiança que desenvolveram levou artista a exigir que fosse ele o produtor do seu primeiro disco. “O Rui queria que fosse eu porque habituou-se a falar comigo. Ele é assim, tem estas coisas. E tinha lógica, de certa forma”. Este era um disco no qual a editora não punha grande confiança, recusando-se a investir muito devido ao elevado risco. O facto de o produtor não querer gravar nos estúdios da Valentim de Carvalho também não ajudou às contas — tudo foi feito a correr, em cinco dias. Para primeiro single foi escolhida a música “Chico Fininho”, que nem era para ser gravada.
Quando o disco ficou pronto, convidaram duas pessoas a ir ouvi-lo ao estúdio. “O primeiro era, já na altura, o director da Valentim de Carvalho para a parte promocional, o Francisco Vasconcelos. Ele foi e convidou o Jaime Fernandes, da Rádio Comercial da época. Foi a primeira audição de duas pessoas que não tinham ouvido nenhum trecho. Ouviram o disco todo seguido e passou depressa. Eu via na cara deles que estavam surpreendidos, havia ali qualquer coisa diferente. No fim, perguntei ao Francisco Vasconcelos a opinião dele. Respondeu: ‘Gosto, sim. Só não gosto muito do som do prato de choque’. Assim uma coisa menor, um pormenor. E eu digo assim: ‘Só? És um felizardo. Há muita coisa que nós não gostamos mas não vamos dizer a ninguém’. (risos) O Jaime Fernandes — nunca mais me vou esquecer disto — encostou-se ao meu ouvido e disse ‘O puto faz-se’. É uma coisa muito portuguesa e paternalista, que caiu bem. Eu, na altura, achava que o puto já se tinha feito”.
Rui Veloso e os outros
Tó Zé Brito já tinha ouvido falar do artista “Quando ia ao Porto ouvia falar do Rui. Diziam-me que ele estava a preparar um trabalho e que tocava muito bem. Mas nunca tinha tido nenhum contacto pessoal”. Numa visita à editora também conseguiu ouvir o disco e, admitiu, ficou bastante impressionado. “Quando ouvi o ‘Ar de Rock’ achei que era uma pedrada no charco. Naquela linha pouca coisa se estava a fazer. E, curiosamente, o ‘Chico Fininho’ passou-me ao lado, não foi daquelas que mais me tocaram. Há muitas com muito mais graça. Mas foi o ‘Chico Fininho’ que tornou o ‘Ar de Rock’ no álbum que foi”.
Tózé Brito trabalhava na concorrência, na Polygram, e era responsável por encontrar novos talentos para a editora. A mesma função que António Pinho tinha na Valentim de Carvalho. O sucesso de “Chico Fininho” e “Ar de Rock” foram responsáveis pelo chamado “boom do rock português”, mas, na opinião de Tózé Brito, outras bandas e músicas poderiam ter ocupado o seu lugar. “Quando álbum sai e tem o sucesso que teve, foi a confirmação de que a aposta era certa. Nessa altura, já tinha assinado com os Táxi e já estavamos a tratar do álbum. A história podia ter sido diferente e acho um erro dizerem que o Rui foi o pai do rock português. Na mesma altura que o Rui estava a gravar já havia muitas bandas no activo, como os UHF ou os Xutos & Pontapés.”
A verdade é que a vida é feita de coincidências e de acasos. Havia de facto algo a acontecer, mas o momento que ateou o fogo da música dos anos oitenta em Portugal foi o primeiro disco do Rui Veloso. Um momento desta importância é (quase) impossível de prever mas António Pinho acreditava que o disco ia ter sucesso. “Nós acreditámos todos, tanto na editora como eu, o produtor. O Rui talvez não tanto. Mas, de qualquer forma, tínhamos na mão uma coisa diferente para a cena musical mais nova do país na altura. Isso era óbvio. Ninguém sabe o que vai ter sucesso. A minha teoria é que para isso é preciso quebrar o status quo. E o Rui trazia algo de novo”.
De repente, graças ao “Ar de Rock”, toda a gente cantava em português. Os tops encheram-se de bandas novas. O boom do rock continua a ser um dos períodos mais férteis da história da música portuguesa. Esta sexta-feira, Rui Veloso comemora 35 anos de carreira com um concerto no Meo Arena, em Lisboa (veja na nossa fotogaleria os vários álbuns do músico). E será que podia ter sido de outra forma? Podia. Não fosse Emília Veloso tão apaixonadamente preocupada com o seu filho e curiosa por saber se ele conseguiria ser feliz a fazer o que mais gostava, talvez ele tivesse perdido o comboio. Ficando-lhe na memória enquanto maior aventura da sua vida a de fazer um Interrail.