Título: Em Teu Ventre
Autor: José Luís Peixoto
Editor: Quetzal
Páginas: 163
Preço: 15,50€
O aforismo que dá título a esta recensão é atribuído apocrifamente a Freud. Com esta frase, Freud quereria impor um limite às suas teorias de psicanálise, dizendo que, por vezes, é necessário travar interpretações analíticas excessivas. Por vezes, um charuto não é passível de qualquer interpretação fálica. Por vezes, um charuto é apenas um charuto.
É possível que seja este o problema do mais recente romance de José Luís Peixoto, em que se conta a história das aparições da Virgem Maria aos três pastorinhos, sendo estas aparições observadas do lado de fora, a partir de uma perspectiva agnóstica. Para José Luís Peixoto, um charuto nunca pode ser só um charuto, tal como a chuva nunca pode ser só a chuva, mas tem que ser sempre ou “uma sombra que assenta sobre outra sombra, pontos que pousam em toda a superfície do telhado” (página 19), ou “um mundo lá fora que se lança de encontro a este mundo, a esta casa” (página 19), ou “uma palavra de Deus, resposta às orações permanentes. Ou talvez as gotas sejam olhos de Deus, multidão atenta, empurrada pelo vento e pela noite. Ou então está um Deus dentro de cada gota de chuva, e todos são o mesmo, e todos juntos têm o tamanho de um só, pousam no telhado e acomodam-se, escorrem pelas paredes, cobrem a casa inteira ou afundam-se diretamente na terra porque têm pressa de voltar ao céu” (página 20). José Luís Peixoto não permite sequer ao ranho ser ranho, mas obriga-o a ser a demarcação “de uma fronteira no tempo” (página 31).
Há uma desonestidade evidente nestes dois primeiros parágrafos que consiste em retirar uma metáfora do seu contexto e que resulta sempre numa ridicularização desta. Metáforas que admiramos e citamos de cor como “Amor é fogo que arde sem se ver”, se isoladas do lugar em que surgem, tornam-se absurdas, talvez tão absurdas como as que são injustamente referidas no parágrafo acima. No entanto, o problema é que em Em Teu Ventre¸ o contexto está sempre ao serviço da metáfora. As metáforas nunca servem para descrever mais elegantemente as cenas narradas, mas antes para louvar as competências de José Luís Peixoto enquanto escritor.
A certa altura, num dos melhores momentos de Em Teu Ventre, o prior de Fátima interroga Lúcia acerca das aparições, dizendo-lhe que “uma mentira baralha tudo aquilo em que toca, desequilibra o mundo” (página 66) e que esse desequilíbrio exige sempre novas mentiras. Se substituirmos a palavra “mentira” por “metáfora”, temos uma descrição exacta do que acontece neste décimo primeiro romance de José Luís Peixoto. As metáforas vão lentamente desequilibrando o mundo que o escritor tenta construir, conduzindo-o a um ponto em que a narrativa, tal como o escritor, perde completamente o pé.
Em Teu Ventre tem, apesar de tudo, méritos, quase todos inseridos dentro das intervenções de Cristo. Ao longo do livro, a história de Lúcia vai sendo intercalada por aquilo a que à falta de outro nome designaremos por Evangelho Segundo Jesus Cristo, onde encontramos algumas ideias curiosas, como os elogios que Cristo faz à sua mãe, ou quando Cristo procura emendar o poema inicial do Evangelho Segundo São João, sugerindo que antes do verbo já haveria a esperança.
É também interessante que Peixoto, ao suprimir da história o momento das aparições propriamente ditas, procure contar um dos episódios mais controversos da história recente de Portugal sem se comprometer seja com um ponto de vista crente seja com um ponto de vista céptico (embora no capítulo final sugira muito subtilmente as suas dúvidas em relação à veracidade do milagre). No entanto, José Luís Peixoto não se limitou a retirar apenas a mãe de Cristo da história dos três pastorinhos. José Luís Peixoto, como veremos mais à frente, retirou também Jacinta, Francisco e Lúcia de Em Teu Ventre.
Quando Maria, a mãe de Lúcia (uma das personagens principais do romance), lê num jornal a notícia das visões da filha, é dito que “a descrição parece transformar o que aconteceu: os pelintras que enchem os carreiros ficam mais bem apresentados, os uivos das preces afinam-se, as crianças enlameadas e ranhosas ganham outro asseio” (página 96). Aqui, José Luís Peixoto parece criticar aqueles que, ao procurarem polir o momento, destroem a ruralidade e a beleza do sucedido. O problema é que José Luís Peixoto faz o mesmo. As construções frásicas que procuram contextualizar e ruralizar a narrativa afogam-se na enxurrada de metáforas que as rodeiam e até Lúcia é contaminada pela hipersensibilidade com que José Luís Peixoto insiste em premiar todas as suas personagens.
A ruralidade e a sofisticação
Sempre que a Virgem Maria aparece a Lúcia, a pastorinha, segundo o testemunho deixado pela própria, pergunta à mãe de Jesus: “E o que é que vossemecê me quer?”. Este é, acredite-se ou não na verdade dos factos, o aspecto mais extraordinário das aparições de Fátima: a mãe daquele que, para os cristãos, é o Rei do Universo aparece a uma jovem pastora analfabeta de uma aldeia do interior de Portugal, que a interroga nestes termos. A trinta quilómetros de Leiria, uma rapariga de dez anos foi escolhida para conversar com a mulher que, virgem, concebeu do Espírito Santo o redentor do mundo. No entanto, ao escrever Em Teu Ventre, José Luís Peixoto para além de retirar, por motivos já explicados acima, a Virgem da narrativa, faz de Lúcia uma jovem com uma sensibilidade desenvolvidíssima e com rasgos metafísicos. Em Em Teu Ventre, Lúcia não só tem uma conversa com um lenço de assoar em que este confessa não poder deixar de ser aquilo que é (um lenço de assoar) como, a páginas tantas, procura convencer a noite a deter a sua marcha nestes termos:
“Não te custa, eu sei. Se quiseres, escolhes um momento entre todos os que passam pelas estrelas lá fora, pela superfície do céu que é apenas negra, escolhes um momento entre todos os que passam aqui pelo lume, pelas brasas que adormecem ou morrem cobertas por uma camada de cinza branca, que passam pelos intervalos em que não se escutam talheres a bater nos pratos, pelos olhares, escolhes um momento e ficas nele, se quiseres. Será como se, a meio do caminho, decidisses olhar em volta (…).”
Lúcia não é, aliás, a única que é vítima desta hipersensibilidade. Também Maria das Capelinhas, a mais fiel devota dos pastorinhos, a certa altura, avisa a vidente de que a graça desta “é luz preciosa” (página 118) a orientar os restantes peregrinos. Até Cristo, que explicara nos evangelhos bíblicos o reino dos céus comparando-o a grãos de mostarda, não evita a certa altura falar da “emanação invisível de um passado mais remoto do que o começo de tudo” (página 13).
Em entrevista recente à agência Lusa, José Luís Peixoto falava de Em Teu Ventre como uma reflexão acerca da espiritualidade, da religiosidade e da ruralidade de Portugal no início do século XX. Contudo, a ruralidade perde-se no meio da sofisticação intelectual dos protagonistas, a espiritualidade desaparece com o desaparecimento de Maria e a religiosidade está reduzida quase exclusivamente à “Ave-maria” que é inserida abruptamente como leit-motif do romance.
João Pedro Vala é aluno de doutoramento do Programa em Teoria da Literatura da Universidade de Lisboa.