A noite apresenta-se húmida, mas a chuva não se confirma. Pela passadeira vermelha, junto à porta 10 do Estádio das Antas, um desfile de políticos, empresários e artistas: Américo Amorim, Dias Loureiro, Proença de Carvalho, José Lello, Fernando Gomes, Pinto da Costa, Arlindo de Carvalho, Valentim Loureiro. E ainda Maluda e Amália Rodrigues (recebida com ovação), Carlos do Carmo, Filipe La Féria, Júlio Isidro, Augustus, Teresa Guilherme, muitos outros. O povo espreita. “Cobiçam-se anéis, colares e lantejoulas que brilham num casaco que dois salários mínimos não pagariam”, observará no Diário de Notícias Miguel Carvalho, repórter destacado para cobrir aquela noite.

“O que me impressionou muito foi o facto de largas centenas de pessoas terem ido, em procissão, até às portas do estádio, só para verem e acenarem às vedetas”, recorda Miguel Carvalho em 2015. “Muitas dessas vedetas das telenovelas, dos concursos de TV, da política, só eram conhecidas do povo pela televisão.”

cartaz do concerto de sinatra no porto_ foto de Fernando Peixoto Correia

Cartaz do concerto de Sinatra em Portugal

É domingo, 7 de junho de 1992. O Porto prepara-se para o primeiro concerto de Frank Sinatra em Portugal. E será o único. O cantor tem 76 anos, perdeu o vigor do passado, é claro, e isso vai desanimar muita gente. Uns dizem que está “gagá”, mas outros gabam o timbre que resiste.

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Nas vésperas, foi o assunto preferido dos portuenses: nas ruas, nos cafés, em casa. Tanto quanto a memória alcança, Miguel Carvalho recorda que este “foi o primeiro grande concerto de estádio que o Porto teve”. Naquele tempo, a cidade “era pouco mais do que o deserto em matéria de espetáculos de nomeada.”

A imprensa exaltava “a voz da América” com revistas especiais, suplementos, entrevistas traduzidas. No jornal Público, Helena Vasconcelos resume a figura e agarra o detalhe: descendente de imigrantes italianos pobres, que subiram a pulso na vida, Sinatra foi filho único “muito mimado e mesmo efeminado, como diz a sua biografia”. Aliás, “a mãe vestia-o de cor-de-rosa e em pequeno punha-lhe vestidos, porque, segundo ela, gostava era de ter tido uma menina.

Perguntaram à equipa do Sinatra quanto custava um concerto na Madeira e eles responderam com outra pergunta: ‘Quanto custa a Madeira?’

Sinatra, no ocaso, chega às Antas em limousine escoltada por motas da polícia, diz o Público. Em Audi azul escuro, afiança o Correio da Manhã, logo adicionando o pitoresco: “Ao lado de uma acompanhante, não a mulher”. Está a meio de uma digressão que passou por Barcelona e A Corunha, tem o Porto pelo meio e segue para Atenas. É trazido pela produtora LPE, de que entretanto se perdeu o rasto.

Anos antes, já um produtor tinha tentado trazê-lo à Madeira, relata José Duarte, musicólogo e autor do programa Cinco Minutos de Jazz, também ele no Porto em 92. “Perguntaram à equipa do Sinatra quanto custava um concerto na Madeira e eles responderam com outra pergunta: ‘Quanto custa a Madeira?’”

O cantor é fotografado de longe, a entrar na Antas, mas poucos o vislumbram. Vai para a cabine destinada ao treinador do Futebol Clube do Porto, tornada camarim. Enquanto isso, as figuras “muito importantes” fazem a passadeira vermelha e são esperadas por hospedeiras de azul e vermelho, que as instalam no relvado do estádio, em mesas providas de velas, morangos e Raposeira – 350 mesas de dez lugares cada. O resto do público fica nas bancadas.

As portas abriram-se às oito da noite. Mas o espetáculo não começa antes das dez, primeiro com Herman José, em auge de popularidade, para aquecer os espectadores. “Não incendiou o estádio, mas esteve à altura do acontecimento, com um ritmo imparável de piadas”, anota o Público.

Acompanhado por Ana Bola e um “órgão japonês”, para demonstrar “como seria a primeira parte de um concerto de Sinatra no Japão”, o humorista faz striptease, veste-se de “Maximiana” e “José Estebes” e, claro, faz piadas sobre Francisco Alberto, ou seja, Francis Albert Sinatra.

O concerto propriamente dito inicia-se pelas 22h55, com Sinatra e uma orquestra de mais de 40 músicos em palco, dirigidos pelo filho, Frank Sinatra Jr. As bancadas estão preenchidas a dois terços, porque os bilhetes, vendidos em exclusivo aos balcões do Banco Nacional Ultramarino, não tiveram procura extraordinária: sete mil a 15 mil, os jornais não coincidem, com preço mínimo de quase cinco contos (25 euros) e máximo de 30 contos (60 euros) por pessoa.

Figura decadente ou fôlego lendário

O cantor aparece de fato e gravata, lenço vermelho no bolso do casaco. Vai cantar quase todos os grandes êxitos: “Come Fly With Me”, “All or Nothing At All”, “Strangers in The Night” ou “I’Ve Got You Under My Skin”. Desafinado, pouco comunicativo, debita 16 temas. “Old Man River” é considerado um dos melhores momentos da noite.

Num texto intitulado “à sombra da glória”, o jornalista Jorge Dias escreve no Público, dois dias depois, que Sinatra apresentara uma “figura decadente, mas ainda com alguma altivez”. “Sóbrio e envolvente”, qualifica Fátima Vilas-Boas, no Correio da Manhã. “O homem está quase gagá, pálido reflexo de tempos portentosos”, carrega Jorge Dias. “Concerto muito bom”, diz João Botelho da Silva no Diário de Notícias, com remate de apreciador: “O fôlego lendário está reduzido, mas o timbre não perdeu nada em espessura, a dicção permanece acutilante, o timing imperturbável”.

As Antas foi uma má escolha, mas ver o Frank Sinatra ao vivo era assistir sempre a um milagre.

“A Voz” tinha aterrado no Porto em jato particular e não ficou mais de cinco horas, o tempo de jantar, cantar e embarcar novamente. Sabe-se que trouxe 12 seguranças, pediu Camel sem filtro no camarim e Jack Daniel’s no palco, além de ter apresentado uma lista de exigências, daquelas que as produtoras de concertos gostam de divulgar e nunca se sabe se vêm mesmo dos artistas: televisor a cores, um piano, telefone, dois sabonetes, toalhas, guardanapos de linho, 12 caixas de rebuçados para a tosse, latas de sopa Campbell’s, sanduíches de ovo com salada de frango e peru, etc., etc., etc.

O hotel Sheraton do Porto tinha preparado a suíte presidencial, mas o cantor não pernoitou, apenas o filho ficou. Foram cerca de 70 minutos de canções pela modesta quantia, rezam as crónicas, de 140 mil contos – qualquer coisa como 700 mil euros.

“O trabalho de um artista em palco está sujeito a condições extramusicais variadas, e, no caso, as Antas foi uma má escolha”, analisa José Duarte. Mas foi bom ou foi decadente? “Ver o Sinatra ao vivo era assistir sempre a um milagre”, responde.