Era domingo, dia que mais chama ao ócio, a estar no sofá com os olhos à deriva por um qualquer filme que engate o piloto automático no cérebro. Mas João Caldeira foi do contra. Acordou cedo, quis aproveitar a manhã. Ergueu-se cedo da cama e às tantas agarrou-se ao computador. Começou a ler e ver o que pretendia e, quando abriu o Facebook, detetou algo que nem estava à procura. Apanhou “uma publicação” que lhe despertou a curiosidade e o fez pesquisar. Tão contente ficou com o que viu que nem um dia demorou a tratar da papelada: “Era isto mesmo. Inscrevi-me logo na segunda-feira”. Era o primeiro passo para, dali a largos meses, ir para fora fazer o que já faz cá dentro. Só que nos EUA, um país que o leva bem mais a sério.
Estudar e jogar à bola, tudo ao mesmo tempo. Ter tanto empenho num como no outro. João conhece poucos que, aos 19 anos, também o façam em Portugal e isto “sempre [lhe] fez alguma confusão”. Admite que nunca lidou bem com a escolha que o país obriga quase todos os miúdos a fazerem — ou procuram as boas notas que façam o futuro sorrir, ou apostam no jeito de ir atrás de uma bola. Conciliá-las não é impossível, mas é tão difícil como colocar no ângulo todas as bolas que se rematem à baliza. “Chega a certa altura em que não nos é permitido manter as duas coisas”, lamenta, sem que a voz faça parecer que isso o incomoda. Cada dia de João é igual ao anterior — treina futebol às 16h e às 18h30 já tem de estar enfiado numa sala de aula, na universidade. É um vaivém entre Lisboa, onde vive e estuda na Escola Superior de Comunicação Social, e Massamá, onde joga no Oriental Dragoon. Mas, no tal domingo, descobriu algo que o fará ter menos trabalho.
Isto se tudo correr bem. No tal domingo em que escolheu acordar cedo, encontrou a Next Level Sports. O nome é da empresa que se dedica a fazer de intermediário entre miúdos portugueses e universidades norte-americanas, para que os primeiros se candidatem às bolsas de estudo que as segundas têm para lhes atribuir. Resumindo, há a hipótese de João Caldeira ir jogar à bola para os EUA enquanto estuda, sabendo que uma parte não pode existir sem a outra. Inscreveu-se em janeiro e está no programa desde que foi a um treino de captação e acharam que ele tinha talento de sobra. É aí que tudo começa e aconteceu o mesmo a João Serro, de 21 anos. “Inscrevi-me, fui a uma captação, correu bem e, duas semanas depois, disseram-me que tinha sido escolhido”, conta, quando um telefonema do Observador quer saber a história de outro dos cerca de 40 jovens que a empresa está a preparar. “Depois, fui com a minha mãe à sede da empresa e explicaram-nos que tínhamos de pagar 100 euros por mês e que haveria um jogo mensal para mostrarmos o que valemos”, revela.
Parte do resto vem a troco da tal mensalidade, porque a Next Level Sports filma os treinos e jogos de cada miúdo e “faz uma produção dos melhores momentos para enviar aos treinadores das equipas das universidades nos EUA”. É lá que eles olham para o que recebem e depois dizem se gostam, ou não, do que veem. Se apreciarem e quiserem contar com esse português na equipa, João Serro e qualquer outro terá de cumprir certos requisitos:”Tenho de acabar o 12.º anos e fazer dois exames: o TOEFL [para aferir o nível de inglês] e o SAT [teste aos conhecimentos de história, matemática e inglês, obrigatório em qualquer universidade norte-americana]”. Em suma, “é preciso ter bons vídeos e ter os exames feitos”, como resume o segundo João. Já o primeiro explica as coisas que, enquanto vão e não vão para os EUA, a empresa lhes vai pedindo. “Todos os meses temos de fazer um questionário e as perguntas são sempre diferentes. Houve um mês em que se ligavam mais à personalidade: se preferia viver sozinho, se já tinha tido alguma experiência dessas, se era uma pessoa sociável, o que preferia fazer quando tinha oportunidade de estar com os meus amigos, etc. É isso que os ajuda a formar o nosso perfil”, resume.
São questionados sobre quase tudo. Se preferem o calor ou uma temperatura mais fria. Uma cidade pequena, média, grande ou a enormidade de uma metrópole. Uma universidade com dois mil alunos ou uma com mais de 20 mil. É a mistura entre as respostas que dão, os resultados dos exames que têm e o que os treinadores pensam do que fazem no futebol que lhes dará, no final, as opções de escolha — e a bolsa de estudo que as universidades oferecem. E aqui pode estar, ou não, um berbicacho, como lembra João Caldeira. “Não há ilusões do género: se aparecer uma bolsa só de 20% vai-se na mesma. Claro que não. Para um estrangeiro, uma bolsa de estudo nos EUA custa, em média, quase 40 mil dólares por ano. Isto é um negócio para eles”, defende, antes de provar que sabe do que fala: “A não ser que se tenha uma bolsa de 100%, têm que ser pagas quantias pelos pais que superam uma anuidade de uma universidade pública em Portugal”. Antes de chegar a este ponto, a carteira dos progenitores ainda tem de pagar uma taxa de 2.500 euros caso a família aceite uma das propostas apresentada pela Next Level.
Quando pensamos numa liga universitária em Portugal, não tem nível, não se compara à organização norte-americana. Vou para lá perseguir os estudos, mas há aquele bichinho que não desaparece, a esperança de que, quando lá chegar, será mais fácil crescer no futebol. Não nego isso” – João Caldeira
Tanto no caso dos cerca de 40 jovens em formação como no dos 14 que a empresa já enviou para os EUA, a família pagou ou pagará sempre um valor a rondar os cinco mil euros até ver o miúdo embarcar num avião. É muito? É, mas para João Caldeira e os pais é muito mais um ganho do que um gasto. “Isto por nós é visto como um investimento. Quando chegar à altura de se ter de pagar, naturalmente que tenho a perfeita noção que há valores que podemos, ou não, comportar. Estamos esclarecidos lá em casa”, garante. Já a mãe de João Serro ficou surpresa por “ter de pagar assim tanto”, mas, “felizmente”, conseguirá suportar “quatro ou seis mil euros por ano se a percentagem de bolsa da universidade não for 100%”. Talvez por saber, como o sabe Dimas Teixeira, que em Portugal não há hipótese igual à que os EUA oferecem.
O sonho que por cá não dá para cumprir
Este Dimas é o mesmo que há uns anos jogava pela Juventus e seleção nacional. O mesmo que também é pai e “gostava de não ter de tomar decisões pelos filhos” e “aconselhá-los a irem para fora por não haver oportunidade” de estudarem enquanto jogam futebol a sério, em Portugal. O ex-lateral esquerdo é o responsável pelos treinos e pela captação dos miúdos com jeito para a bola e não gosta de ver um novato chegar à Next Level Sports com a esperança de por ali se fazer jogador profissional. “Preocupa-me quando aparece ali alguém a pensar que aquilo será uma rampa de lançamento. Olhar para isto como um projeto apenas desportivo é um princípio errado. Não quer dizer que não possa acontecer, mas a prioridade é ir para os EUA, tirar o seu cursozinho e talvez continuar a jogar”, desabafa, quando lhe perguntamos se não costuma encontrar jovens que só veem o lado redondo do programa da empresa.
Dimas não joga desde 2002 e isso deu-lhe tempo para constatar o que já antes suspeitava — “somos um país de talento, não só no futebol, mas muito pequenino e com pouco espaço para os milhares de miúdos” que sonham ser “profissionais” a jogar à bola. O homem que colecionou 44 jogos pela seleção nacional admite que, às vezes, lhe custa “imenso” olhar para um rapaz “e perceber que sim, ele pode lá chegar”, mas que, “tendo esta porta da Next Level Sports”, talvez seja melhor abri-la e ir por esse caminho. “Aconselho mais rapidamente a irem para isto. Não estamos a dizer que não vai ser um grande jogador, mas sim a mostrar-lhe que é possível estudar e jogar ao mesmo tempo. Em Portugal não temos essa hipótese”, argumenta. E depois vem a conversa que qualquer futebolista sabe e que muitos preferem esquecer enquanto jogam: que a carreira é curta, dura pouco e que aos trinta o que sempre fizeram na vida pode deixar de lhes dar sustento.
5.000€
O valor que cada miúdo (ou a família dele) paga, em média, até ele viajar de vez para os EUA. Enquanto estiver no projeto em Portugal, cada jovem paga uma mensalidade de 100 euros, custo ao qual acresce o preço do TOEFL e do SAT, exames que tem de cumprir com sucesso — caso não os tenha já feito. No final, há o pagamento de uma taxa de 2.500 euros no momento em que aceita a proposta de uma universidade norte-americana.
Era “um sonho”para o antigo futebolista e “qualquer pai” não ter de pensar em inscrever o filho num destes programas, mas Portugal, defende Dimas, não deixa. Por isso é que “há quase um ano” aceitou o convite que Tasslim Sualehe lhe fez. Na altura, o projeto já existia desde 24 de maio de 2014, quando o empresário aproveitou a final da Liga dos Campeões, em Lisboa, para dar simbolismo ao pontapé de saída do projeto. “Iniciámos aí a primeira captação e tem estado a correr tudo bem”, assegura-nos. Foi aí que concretizou a vontade que teve em trazer para o país a ideia que viu dois amigos implementarem no Brasil. “Achei o projeto muito interessante e vi que havia essa necessidade em Portugal. Que existiam muitos atletas que chegavam ali ao 10.º, 11.º e 12.º anos sem saberem o que fazer à vida. Por isso resolvemos a abrir a empresa na Europa e surgiu a Next Level” resume, ao falar da empresa que criou e apontou para um país onde o futebol ainda apanha com a poeira de modalidades como basquetebol, o futebol americano e o beisebol.
O desporto que é rei no resto do mundo está a crescer, e muito. Há cada vez mais estrelas cadentes a irem fechar a carreira à MLS (Major League Soccer) — David Villa, Andrea Pirlo, Frank Lampard, Steven Gerrard, Robbie Keane ou Raúl apareceram depois de Thierry Henry e David Beckham lá chegarem — e o público começa a encher mais os estádios e as audiências televisivas. “A probabilidade destes miúdos irem para a MLS é muito grande. Oitenta por cento dos jogadores vêm das universidades, é o sistema norte-americano”, indica, falando do draft, que no final de cada época coloca os clubes a sortearem a ordem pela qual escolherão os melhores jogadores do campeonato universitário norte-americano. “Como é um mercado enorme, eles têm dificuldades em formar grandes equipas só com jogadores norte-americanos”, resume. E se, por acaso, os miúdos portugueses não consigam chegar à MLS, podem agarrar-se aos estudos que por lá tiveram: “Se não dá para o desportivo, terá uma bolsa mais pelo nível escolar. Os EUA também procuram crânios. Não é só o desporto, eles competem em tudo”.
Aquilo que quero mesmo é jogar futebol. Os estudos são uma coisa que tenho de fazer porque quero ir para lá jogar. Mas não vou para lá a pensar que o que quero é ser jogador e o resto que se lixe. Tenho de me aplicar nos dois sentidos. O que mais quero é ficar lá os quatro anos, tirar a licenciatura, aprender, e ser bem-sucedido no futebol. Mas o que gostava mesmo era de chegar um dia à MLS. É para isso que vou trabalhar” – João Serro
Tasslim garante que “o processo é simples” e a Next Level funciona, sobretudo, como intermediária. A empresa tem três treinadores nos EUA, que recebem os vídeos dos miúdos que estão a ser preparados em Portugal para depois ligarem e escreverem para as universidades. Perguntam aos técnicos locais o que a equipa precisa e, conforme as respostas, mostram-lhes o que eles querem ver. João Caldeira é médio centro, mas não está em pulgas por saber que universidades o querem porque está “a jogar numa equipa sénior e a estudar ao mesmo tempo” em Portugal — portanto, o projeto “não é uma questão de vida ou de morte, como o é para alguns que nem na universidade estão e se agarram a isto com tudo”. João Serro diz que o melhor é estar “a lateral ou extremo direito”, embora jogue “em todas as posições menos a defesa central”. Está com 21 anos — o limite para estar no programa vai até aos 23 — e, mesmo sem pensar “o resto que se lixe”, diz que “gostava mesmo de um dia chegar à MLS”.
Para o conseguir, vai ter de estudar.