Não era difícil imaginar tudo isto em filme. Seria um daqueles típicos de domingo, em que a tarde serve para se ficar estatelado no sofá, de pijama ou roupão vestido, cérebro em serviços mínimos só para manter o olhar centrado no ecrã de televisão. O enredo do filme, não dos complexos, contaria a história de um australiano, loirinho e bom de surf, e das 11 paragens que fez na sua volta ao planeta para competir nas etapas do circuito mundial da modalidade, para chegar ao fim como o campeão. Quem visse o filme pensaria que só poderia ser ele, porque haveria o típico carrossel de altos e baixos para baixar as expetativas e dar um final em alta ao protagonista. Quem não ficaria a torcer por alguém que sobrevive a ataque de tubarão e, na última prova da temporada, ganha um heat a dois dos melhores surfistas do mundo, pouco depois de lhe dizerem que o irmão mais velho morreu?
Pouca gente, e por isso é que muitos estavam a fazer figas para que fosse Mick Fanning o novo campeão mundial de surf. Mas isso seria um filme hollywoodesco, de público fácil, tão previsível que até faria as pessoas esquecerem o quão o australiano, de 34 anos, merecia chegar ao quarto título da carreira. Mas um filme apenas arranca “uaus” se tiver um final que poucos esperam e muita gente os terá disparado quando viu Adriano de Souza a festejar na areia de Ehukai, praia de Oahu, uma das ilhas do Havai. Porquê? Aqui entra outra história, que também é das boas.
Porque Adriano chegou ao circuito há 10 anos como o baixote e tímido brasileiro, que mal arranhava o inglês e nem barba na cara tinha. Ainda era o tempo em que a internet não ligava pessoas como hoje liga e praticamente não havia outros surfistas que falassem português. Quando viajar pelo mundo fora parecia ser outro mundo para um brasileiro vindo de Guarujá, no estado de São Paulo, que sempre tivera na pobreza a melhor amizade.
Porque, mais do que não esquecer do que o irmão mais velho fez, nunca deixou de ter noção de que “30 reais [mais ou menos sete euros] era muito dinheiro para a época” em que o viu a comprar-lhe a primeira prancha de surf. Por saber que veio “do lado pobre” da vida e valorizar o facto de “a maioria das pessoas que vivem no sítio” onde nasceu “serem felizes, independentemente da situação financeira”. Foi a isso que se agarrou quando, findos anos e anos a ser praticamente o único brasileiro a surfar no circuito mundial, viu um miúdo roubar-lhe o sonho.
Porque foi Gabriel Medina e os seus 18 anos a conseguirem ser o primeiro brasileiro a sagrar-se campeão do mundo de surf. Viu-o a conseguir à segunda o que Adriano não foi capaz de fazer em oito edições da competição. Assistiu e foi arrastado pelo fenómeno chamado Braziliam Storm, a tempestade que colocou oito brasileiros no circuito e fez de Adriano de Souza o mais velho entre eles — e talvez o único que menos aposta em tentar aéreos e voos por cima das ondas para tentar colher mais pontos do júri.
Porque sempre preferiu um surf de prancha na onda, mais consistente, a rasgar a água com viradas e cutbacks longos, dos que deixam leques de água nos sítios onde escolhe dar curvas. Porque, em maio, já na liderança do circuito, ainda achava que tinha de “melhorar em muitas coisas” e confessava não acreditar que tinha “nível suficiente para estar ao lado” de surfistas como Kelly Slater e Mick Fanning, o norte-americano 11 vezes campeão do mundo e o tal australiano cujos baixos fizeram as pessoas desejar que acabasse em alta.
Mas não acabou, porque o brasileiro que lhe roubou o sonho há um ano devolveu-o neste. Gabriel Medina venceu Fanning esta quinta-feira, nas meias-finais da última etapa do circuito em Pipeline, no Havai, e garantiu que já não havia matemática que tirasse o título a Adriano de Souza. O Mineirinho — alcunha que ganhou por ser mais novo que o irmão, a quem os amigos chamavam Mineiro — quase não conseguia falar devido à emoção: “Dedico o título também ao meu irmão, que me deu minha primeira prancha com 30 reais. Era muito dinheiro para ele, eu sabia, e hoje estou no topo do mundo graças a 30 reais”. Aos 28 anos, Adriano chorou por se tornar o melhor.
Porque, além do irmão, da família, da pobreza de onde veio e do muito que teve de lutar para ali chegar, lembrou-se de Ricardo dos Santos. Do amigo que, em janeiro, foi assassinado no Brasil e que leva recordado na tinta que entretanto pôs no braço. “Sou muito abençoado pelo Ricardo lá em cima. Dedico-lhe este troféu, fiz uma homenagem para ele, está aqui no meu braço para sempre, vou carregar a alma dele comigo. Sei que, onde eu esteja, ele vai estar sempre comigo. Eu tinha muito respeito por ele aqui na terra e ele agora está lá em cima a cuidar de mim”, disse. E talvez também porque conseguiu ser campeão em Pipeline, a onda que, o ano passado, o tratara mal e o obrigou a desistir da prova com um nariz partido. Voltou, não teve medo e conseguiu cumprir um sonho.
Querem melhor filme do que este?