Título: A de Açor
Autor: Helen Macdonald
Editora: Lua de Papel
Páginas: 340 páginas
Preço: 14,85€
O adestramento de um açor, o seu processo de treino, está directamente relacionado com o temperamento da pessoa que se coloca na posição de falcoeiro. Este livro é, por isso, mais do que a história do adestramento de um açor: é também a história de Helen Macdonald. A autora assume que “transportamos as vidas que imaginamos tal como transportamos as vidas que temos e, por vezes, fazemos o cômputo de todas as vidas que perdemos” (p. 152). As vidas que imaginamos e que temos são constituídas pelas vidas de outras pessoas e são, também, construídas contra as vidas dessas outras pessoas; esta reflexão diz assim respeito ao modo como se actualiza, ou não, o potencial que cada um carrega.
Não é apenas Macdonald que ficamos a conhecer em A de Açor, mas também T. H. White, autor de The Goshawk, um dos muitos livros de falcoaria que a autora começou a ler precoce e inusitadamente por volta dos oito anos. A história de Macdonald é escrita a par da história de White porque “ele estava lá. Quando treinei o meu açor, estava a ter uma espécie de conversa amena com os feitos e obras de um homem há muito desaparecido, que era desconfiado, taciturno e determinado no que tocava ao desespero” (p. 50). A conversa, porém, não é tão amena quanto a autora pretende: a descrição do adestramento de Mabel, o açor de Macdonald, é intercalada pela descrição do adestramento de Gos, o açor de White, e há uma tensão crescente que resulta de percebermos o que Macdonald e White têm em comum, e de como a autora teme essa aproximação. White faz parte da história de Macdonald porque há um reconhecimento em simultâneo com um desejo de diferenciação: ela não quer ser como White e por isso tem de construir a sua história contra ele, mas com ele.
Sair da invisibilidade
Em vários momentos é-nos dada a conhecer parte da história da falcoaria inglesa que, pelas condições que a sua prática exigia (a posse das aves de rapina, a disponibilidade de tempo para o seu treino e ser-se proprietário de um local apto para esse mesmo treino), era a actividade de uma elite. A justificação dada para que só alguns tivessem o direito a tal prática derivava de estar “profundamente enraizada na natureza de determinados indivíduos uma certa qualidade que inspira uma ligação natural com as aves de presa”; “o verdadeiro falcoeiro nasce assim, não se faz” (p. 137). Macdonald não consegue contradizer totalmente a ideia de certos temperamentos serem mais propícios ao adestramento de aves de rapina do que outros, uma vez que deixa claro que há uma qualidade imprescindível ao treino de um açor que ela possui desde criança – a capacidade de se tornar invisível:
“Uma ave de rapina não é um animal social como um cão ou um cavalo; não compreende a coerção nem os castigos. A única maneira de a domesticar é através do reforço com presentes de comida. Queremos que coma o alimento que seguramos – é o primeiro passo que lhe exigimos e que terminará com a colaboração mútua na caça. Mas o espaço entre o medo e o alimento é um fosso muito vasto, que temos de transpor juntos. Em tempos pensava que isto se consegue com uma paciência infinita. Mas não: é preciso mais do que isso. Temos de nos tornar invisíveis.” (p. 82)
Esta sua capacidade de ser uma observadora “invulnerável, distante, completa” (p. 218) é também um dos seus desejos mais íntimos; aliada à descompensação provocada pela morte do pai (ele também um observador exímio – era fotojornalista), esta conjunção conduz Macdonald à posição tão desejada quanto temida: “Eu estava a transformar-me num açor” (p. 102).
A sucessão dos acontecimentos incentiva a tentação de atribuir à morte do pai de Macdonald a causa da sua decisão de adestrar um açor. As consequências emocionais dessa perda, intensificadas pelas características da autora, parecem colocá-la no estado mais propício ao desenvolvimento extremo da sua capacidade para a invisibilidade – a sua aniquilação enquanto ser humano: “Caçar com uma ave de cetraria levou-me ao limite do ser humano. Em seguida, transportou-me para qualquer sítio onde eu já não era humana” (p. 225).
Porém, a relação entre temperamento e falcoaria manifestada neste livro é de outra natureza: treina-se um açor não só do mesmo modo que fomos educados ou por antítese para com essa educação, mas de acordo com os nossos desejos e necessidades mais profundos. O que Macdonald compreendeu em relação a White é que o açor Gos lhe deu oportunidade de ser “o pai benevolente, a criança cândida, o professor bondoso, o aluno paciente” (p. 135), o contrário de tudo aquilo que ele tinha tido. À autora, a falcoaria deu-lhe a oportunidade de se refugiar temporariamente num mundo em que não havia dor. Mas Macdonald percebeu o seu erro a tempo, algo que não aconteceu com White: um açor não é humano e resiste sempre a essa categorização; treinar um açor não é cuidar de uma pessoa e não nos podemos tornar num açor e adestrá-lo simultaneamente. Se o fazemos, podemos ser confundidos com a presa a ser morta, como chega a acontecer com a autora, atacada por Mabel num momento em que esta a toma por um faisão (p. 244).
Actualizarmos todo o potencial que carregamos pode ser um perigo para a nossa própria preservação. Na qualidade de falcoeira, Macdonald tem a responsabilidade de ensinar Mabel a ser quem é; neste processo, a autora abandona a sua invisibilidade e deixa de ser apenas uma observadora, uma vez que tem de ajudar Mabel a matar, levando-a até lugares onde encontrar presas e, quando Mabel é apenas um açor bebé, ajudando-a a matar e depenar os faisões e coelhos que consegue caçar. Macdonald sente, nesses momentos, que se tornou responsável perante si própria, “perante o mundo e todas as coisas que ele contém. Mas só quando matava” (p. 227); quando, tal como White, colocava diante de Mabel “uma cabeça de coelho aberta ao meio, com os miolos à mostra” (p. 92). A facilidade que a autora demonstra em assimilar o mundo em que a ave vive deve-se também a uma falta:
“Não se brinca com açores. Não é coisa que as pessoas façam. Mas eu tive de o fazer, para de algum modo aliviar a pressão. Porque outras pessoas com açores também têm pessoas. Para elas, as suas aves de presa são o seu pequeno fragmento da natureza, aquilo que equilibra a vida familiar; na floresta com a ave de rapina, outros falcoeiros entram em contacto com as suas almas solitárias e sanguinárias. Mas depois vão para casa, jantam, vêem televisão, brincam com os miúdos, dormem com a companheira, acordam, fazem chá, vão trabalhar. Precisamos de ambos os lados, como dizem.” (pp. 255-6)
Macdonald partilha esta falta com White; tanto ele como a autora conseguiram isolar-se no mundo dos açores porque aquilo que os prendia ao mundo das relações humanas não era suficiente. No entanto, Macdonald cedeu perante a possibilidade de perder Mabel. Os açores precisam de atingir um peso de voo e, embora a experiência de Macdonald em falcoaria a tornasse numa especialista no assunto, o seu medo toldava-lhe o julgamento. Aterrorizava-a poder matar Mabel à fome quando o açor precisava de perder peso para poder ser largado a voar, o que implicava reduzir a quantidade de alimento. Embora a falcoaria consista num princípio básico, o de que a ave voará ao encontro do falcoeiro se estiver com fome (p. 142), o equilíbrio entre a fome e o alimento necessário é frágil e difícil de manter. A cedência da autora consistiu em abdicar de continuar a ser uma especialista e deixar-se guiar pelos conselhos de uma pessoa em quem confiava e que, ao contrário dela, já tinha adestrado açores: “e foi ali, na orla do campo de jogos de uma aldeia, que, cheia de gratidão, regressei ao noviciado, como se nunca na vida tivesse visto uma ave de rapina” (p. 170). Embora o potencial estivesse presente, embora a autora tivesse o conhecimento adequado, foi necessário alguém que o reconhecesse e dirigisse da maneira certa; sozinha, poderia ter incorrido no mesmo erro de White, sabotando todas as possibilidades de êxito.
A única conversa que os açores podem ter
As relações que Macdonald descreve como aquelas que se estabelecem entre falcoeiros e açores são muito semelhantes às que se estabelecem entre pessoas, “linhas palpáveis, não físicas: linhas de hábito, de fome, de companheirismo, de familiaridade. De qualquer coisa a que os antigos falcoeiros chamavam amor” (p. 183). É imprescindível que o açor que treinamos saiba que é a nós que tem de voltar para se alimentar, apesar de poder fazê-lo sozinho, e é essa confiança que temos de ter no treino que fazemos para que possamos lançar o açor a voar em liberdade. As linhas de Macdonald com Mabel eram mais fortes do que aquelas que ela tinha com outro ser humano mas, tal como a autora diz, ela tinha de tentar ser mais feliz pela Mabel (p. 177). No entanto, para isso, tinha de reaprender a ser pessoa, o que implicava perceber as diferenças fundamentais entre aves e humanos, entre o mundo a que Mabel pertencia e o mundo a que ela pertencia. No mundo de Mabel, as mãos humanas servem apenas de poleiros para aves de rapina e para ajudar a desfazer coelhos e faisões ensaguentados; mas Macdonald percebe que “as mãos humanas são para serem seguradas por outras mãos humanas” (p. 251).
Não só: as mãos servem para muitas outras coisas, como construir as casas que habitamos. Açores até podem habitar temporariamente o mesmo espaço que nós, mas as suas necessidades são muito diferentes. Durante os meses de Primavera e Verão, quando ocorre a substituição da plumagem das aves de rapina, Macdonald tem de deixar Mabel num aviário de muda, onde “há ramos cobertos de casca de árvore e poleiros guarnecidos de relva artificial para ela poder massajar os pés. Há uma tina e uma calha inclinada através da qual Tony lhe dará comida; ervas rasteiras, gravilha, um abrigo, um retalho de sol para se aquecer. Acima do tecto de rede de arame, o céu do Suffolk”. (p. 322)
Mabel não precisará de mais. Apesar de a autora ter brincado com o açor, a única conversa que açores podem ter são aquilo “a que Barry Lopez chamou ‘a conversa da morte’, algo que viu na troca de olhares entre caribus e lobos que os caçavam, uma negociação sem palavras que termina com ambos a calcularem se irão tornar-se caçadores e caçados, ou seres que se cruzam ao passar uns pelos outros” (p. 240). Pessoas têm e precisam de outras conversas, tal como habitam e precisam de habitar lugares diferentes, onde “cães estão deitados no chão da cozinha, de cauda a abanar, a chaleira está a assobiar e a casa está bem aquecida” (p. 323).
Há um lugar na vida de Macdonald à qual o açor Mabel e o autor White pertencem; o que é necessário é que a autora tenha uma vida para além dessa que vive com eles. É possível pertencer a dois lugares, desde que num deles haja alguém que coloque uma chaleira ao lume com água a aquecer.
Helena Carneiro é aluna de doutoramento no Programa em Teoria da Literatura da Universidade de Lisboa