Faz este mês 50 anos que foi publicado em livro pela primeira vez In Cold Blood, de Truman Capote, “relato verdadeiro de um assassinato múltiplo e das suas consequências”. 1966, diz a Wikipedia que às vezes parece não nos querer esconder nada, que foi um ano comum, que começou num sábado e que foi o milésimo nongentésimo sexagésimo sexto ano da Era Comum, Anno Domini, nongentésimo sexagésimo sexto do segundo milénio, sexagésimo sexto do século XX e sétimo ano da década de 1960 e, podíamos acrescentar, Ano da Graça de 1966. Foi o ano em que, entre outras coisas, Bob Dylan teve um desastre de mota que o pôs fora de circulação (é caso para dizer) por um ano. Em Portugal, foi o ano em que Américo Tomás e Salazar presidiram à inauguração da Ponte 25 de Abril. Nesse mesmo ano, a seleção nacional disputou em Londres as meias-finais do Campeonato do Mundo de Futebol, acabando por obter o terceiro lugar.
A Sangue Frio fora uma sensação na sua primeira versão, publicada em 1965 em quatro números consecutivos da revista The New Yorker, a mesma que já dedicara um número inteiro ao Hiroshima de John Hershey (há – ou houve – nos Estados Unidos revistas assim). Marcou uma data. Ressuscitou a carreira de Capote, que publicara havia bastante tempo a sua última obra de algum fôlego – a “novela” Breakfast at Tiffany’s, de 1958 (que deu o filme “Boneca de Luxo”, de Blake Edwards com uma Audrey Hepburn perfeita, um George Peppard canastrão, um inesperado Mickey Rooney e o hit musical de Johnny Mercer e Henry Mancini Moon River; A Sangue Frio foi excelentemente filmado por Richard Brooks; Capote esteve lá e escreveu “Ghosts in the sunlight: the filming of In Cold Blood“, dez páginas em que sete palavras do primeiro parágrafo são tiradas diretamente do primeiro parágrafo do livro).
Um “escritor” consagrado emprestava o prestígio da sua glória literária a uma peça jornalística – que seria um livro de mais de trezentas páginas. Era o resultado de vários anos de trabalho no terreno, com a ajuda devidamente reconhecida da sua amiga e também escritora Harper Lee. O autor não lhe chamava jornalismo – chamava-lhe um “romance de não-ficção”. Mas nos agradecimentos da edição em livro dizia: “Todo o material deste livro que não procede da minha observação direta, ou foi tirado dos registos oficiais ou resulta de entrevistas com as pessoas diretamente implicadas, na maior parte dos casos numerosas entrevistas conduzidas ao longo de longos períodos de tempo.”
[Veja o trailer de “A Sangue Frio”]
Mais do que a aplicação ao romance de práticas jornalísticas era a prática do jornalismo com todos os recursos do romance, como muito convincentemente sustenta Tom Wolfe. Norman Mailer considerou o exercício uma prova de “falta de imaginação” mas depois escreveu nessa veia alguns dos seus melhores livros, como The Armies of the Night ou The Executioner’s Song (Truman Capote não resistiu a incluir um remoque a este respeito, no prefácio à coletânea A Music for Chameleons).
Foi em revistas como The New Yorker, Esquire e várias outras, nos suplementos dominicais de alguns jornais, que nasceu aquilo que cristalizava, por assim dizer, em A Sangue Frio e por esses anos foi baptizado, não se sabe exatamente por quem, com o nome de “novo jornalismo”. Tom Wolfe (que se renderia, por fim, ao romance, com The Bonfire of the Vanities, A Fogueira das Vaidades, a que se seguiriam outros), tinha sido um dos mais eminentes praticantes do “novo jornalismo” (também publicou em 1979 – o caminho por essa altura estava escancarado – a sua reportagem de umas centenas de páginas, o brilhante The Right Stuff, que seria no cinema, em português, Os Eleitos).
Nos anos 70, Wolfe fez a história, defesa e ilustração desse “novo jornalismo” em várias peças jornalísticas que depois constituíram a longa, documentada e perspicaz introdução a The New Journalism, uma antologia do “novo jornalismo” que incluía trechos de In Cold Blood, de Mailer, de Joan Didion, de John Gregory Dunne, de Hunter S. Thompson, de Michael Herr (quem não leu o seu Dispatches, não sabe o que perde) e vários outros. Para Wolfe – e não sou eu que o vou contradizer – “a mais importante literatura que se escreve hoje nos Estados Unidos é na não-ficção, na forma a que se deu o nome, por mais desastrado que seja, de Novo Jornalismo”. (Por onde começar? Jimmy Breslin ou Gay Talese ou The Sweet Science de A. J. Liebling ou The Selling of the President de Joe McGinnis e por aí fora).
O jornalismo tomava o lugar do grande romance oitocentista – “a alegria do realismo dos pormenores e os seus estranhos poderes”, o de Balzac, de Tolstoi, de Dickens. O romance “literário” transformara-se quase totalmente na província – em que ainda vivemos – da maldita Fábula, do Mito, da Magia, da Parábola, em que a regra é nenhum lugar ter nome e nenhum tempo ter data. Romances que não nos mostram “como vivemos hoje” (como diz o título do grande romance de Anthony Trollope, The way we live now, em muitos aspectos, aliás, tão “actual” hoje como os romances de Eça de Queirós).
Um testamento
A Sangue Frio não foi o primeiro exercício no género de Truman Capote. Tinha publicado quase dez anos antes, por exemplo, The Muses Are Heard. No prefácio (que saíra primeiro como artigo, na Vogue, as revistas, as revistas …) de uma coletânea publicada em 1980, intitulada Music for Chameleons, o próprio Capote conta como começou a escrever ainda criança e “o que de mais interessante escrevi nesses tempos foram as simples observações do dia-a-dia que anotei no meu diário”. Nesse prefácio presta homenagem, vale a pena referir, a Picture, o livro da jornalista Lillian Ross sobre a filmagem de “A bandeira vermelha da coragem”, de John Huston, que é certamente uma das mais memoráveis peças literárias da literatura moderna americana.
Era essa “ficção verdadeira” o seu “destino criativo”? O que fez nesse terreno é, certamente, do melhor e do mais perene que escreveu. Antes e depois escreveu nesse registo muitas outras notáveis peças curtas, incluindo um outro “relato de não-ficção” sobre um outro crime (Hancarved Coffins, caixões talhados à mão), recolhidas em Music for Chameleons e The Dogs Bark. Mas In Cold Blood foi o último “romance” que publicou – e é o seu grande livro. O seu testamento: queria que tivesse “a credibilidade do facto, a imediatez do cinema, a profundidade e a liberdade da prosa, a precisão da poesia”. Estava por completar à morte de Capote, em 1984, um ambicioso projecto que tinha por título Answered Prayers, Preces Atendidas, sob a invocação de Santa Teresa “Há mais lágrimas derramadas por causa das preces que foram ouvidas do que pelas que não foram atendidas”.
Stendhal subintitulou o seu Le Rouge et le Noir “Crónica de 1830”. Abaixo as primeiras linhas do grande romance de Stendhal e as de A Sangue Frio (não tenho traduções portuguesas à mão, as traduções são minhas):
“A pequena cidade de Verrières pode passar por uma das mais bonitas da Franche-Comté. As suas casas brancas com os seus tetos pontiagudos de telhas vermelhas estendem-se pela encosta de uma colina, cujas mínimas sinuosidades são marcadas por tufos de vigorosos castanheiros. O Doubs corre umas centenas de pés abaixo das suas fortificações, construídas outrora pelos espanhóis e hoje em ruínas.”
“A aldeia de Holcomb fica nas altas planícies de trigo do oeste do Kansas, uma zona apartada a que os outros naturais do Kansas chamam ‘lá longe’. Umas setenta milhas a leste da fronteira do Colorado, o campo, com os seus céus de azul forte e o seu ar cristalino de deserto, tem uma atmosfera que é bastante mais a do Faroeste do que a do Middlewest.” (“Os últimos a vê-los vivos”)