A editora Tinta-da-China voltou aos lançamentos com Nietzsche e Pessoa, um livro de ensaios que procura fazer uma aproximação entre a filosofia do autor de Assim Falava Zaratrusta e a obra do português Fernando Pessoa. Mais do que procurar Nietzsche em Pessoa, o conjunto de ensaios pretende explorar algumas das semelhanças que existem entre os dois autores que, apesar de separados temporalmente, não deixaram de ter muito em comum.

Com organização de Bartholomew Ryan, Marta Faustino e Antonio Cardiello, o livro reúne 17 ensaios de alguns dos mais importantes especialistas na obra de Friedrich Nietzsche e Fernando Pessoa, como Eduardo Lourenço, Richard Zenith e João Constâncio, que participaram no ano passado na conferência internacional “A Pluralidade do Sujeito e a Crise da Modernidade”, que decorreu em fevereiro na Casa Fernando Pessoa, sobre estes e outros autores.

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O livro chegou às livrarias no dia 12 de fevereiro. O objetivo é lançar uma edição em inglês no decorrer do próximo ano

Quase todos os artigos de Nietzsche e Pessoa foram apresentados nessa mesma conferência, com exceção do ensaio de Eduardo Lourenço, “Nietzsche e Pessoa”, publicado pela primeira vez em França, em 1988. “Queríamos muito incluir este texto e que fosse o primeiro do livro porque o Eduardo Lourenço é muito importante e fez muitos bons trabalhos sobre Nietzsche, Kierkegaard e Pessoa“, explicou ao Observador Bartholomew Ryan, investigador de pós-doutoramento no Instituto de Filosofia da Universidade Nova de Lisboa. “E o artigo não estava muito disponível. Foi publicado uma vez em Portugal, há muitos anos.”

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O artigo de Eduardo Lourenço serve de introdução às três partes que constituem o livro — “Intervalo I: Raízes, Referências e Conversas”, “Intervalo II: Entre Filosofia e Poesia” e “Intervalo III: A Estética da Pluralidade” –, organizadas segundo a antiga forma da ode grega. A organização foi parcialmente inspirada pela estrutura da “Ode Marítima”, mas também pela admiração de Nietzsche pelos poetas líricos antigos. A fechar o volume encontra-se um artigo de Jeronimo Pizarro, sobre doze textos em que Fernando Pessoa refere o nome do filósofo.

Segundo Ryan, o objetivo da publicação não foi tanto encontrar a influência de Nietzsche na obra de Pessoa, mas sim encontrar pontos em comum entre os dois autores. Até porque, tanto quanto se sabe, o poeta só tinha um livro do filósofo alemão — uma versão em espanhol de Assim Falava Zaratrusta. “O mais interessante é o que podemos aprender sobre Nietzsche através de Pessoa, e vice versa. Podemos perceber melhor Nietzsche com Pessoa, também. Preferimos fazer isto.”

Apesar de Fernando Pessoa ter escrito alguns ensaios de teor filosófico, a sua “melhor” filosofia não estava na prosa, mas sim na poesia. “É verdade que Pessoa escreveu alguns textos filosóficos, fragmentos”, admitiu Ryan. “Mas, para mim — para nós, os editores — é muito interessante que a filosofia mais forte esteja dentro da poesia. Claro que Pessoa escreveu alguns ensaios, mas ele escreveu alguns deles quando tinha 18, 19 anos, e por isso são muito superficiais. São muito naïves“, explicou o investigador irlandês.

“Para Pessoa, Deus era a imaginação”

Pessoa haveria de voltar mais tarde à filosofia, mas sob a pena de Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Bernardo Soares. “Eles têm uma filosofia muito interessante sobre o conceito de niilismo, de ‘eu’. Coisas que, por exemplo, Kierkegaard e Nietzsche falaram — o futuro sem Deus, sem valores”, salientou Bartholomew Ryan.

Quando Nietzsche disse (ou melhor, escreveu) que Deus estava morto, não se estava a referir ao fim da religião, mas sim à morte dos valores antigos. Em Pessoa, porém, o “Deus” era outro. “Para ele Deus era arte. A vida é arte. Mas uma arte que reflecte muito sobre a própria arte. Esta é a filosofia original de Pessoa. É um poeta, claro, mas que responde aos problemas do século XIX, do século XX, com grande sucesso. E até de agora. Ainda é fácil de ler.”

“Quando Nietzsche diz que deus morreu, está a falar dos valores de antes e de um desafio para criar uma nova personalidade. É como Álvaro de Campos diz: ‘Vamos evocar as musas dentro de nós’. Não precisamos de outras coisas de fora, de outras pessoas”, explicou Ryan “A expressão ‘vontade de poder’ de Nietzsche, é sobre ser um artista sem fronteiras. Para ele, um artista é como Stendhal ou Dostoievski — sem fronteiras e com diferentes personagens que podem ser usadas psicologicamente.” E os heterónimos de Pessoa são exatamente isto — são um exemplo de “vontade de poder”.

Nietzsche, Pessoa… E o Islão?

Um dos ensaios (aparentemente) mais improváveis do livro é “Nietzsche, Pessoa e o Islão: notas sobre a receção de Der Antichrist por Fernando Pessoa”, da autoria de Fabrizio Boscaglia. À semelhança de todos os outros, o ensaio não fala tanto da influência propriamente dita do filósofo alemão em Fernando Pessoa, mas sim “da possibilidade de o livro [Der Antichrist, isto é, O Anticristo] ter feito parte da bagagem bibliográfica e das leituras que acompanharam as teorizações de Pessoa sobre o Islão”, esclareceu o investigador italiano ao Observador.

Boscaglia, membro do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, ganhou interesse pelo estudo da presença do Islão na literatura portuguesa (e em Fernando Pessoa, claro) quando, em 2009, participou na digitalização da biblioteca particular do autor da Mensagem, na Casa Fernando Pessoa. “Reparei que havia apontamentos manuscritos em livros sobre o Islão, que remetiam para um significativo interesse por estes temas. Foi assim que decidi aprofundar esta vertente”, contou ao Observador. “A literatura e a filosofia muitas vezes servem para isso: para nos mostrar o que sempre lá esteve e em que nós nunca reparámos.”

O investigador acredita que não é estranho que Pessoa tenha refletido sobre o Islão, uma vez que este tinha um grande interesse pela “história e missão cultural de Portugal”, parcialmente influenciadas pelo legado da cultura islâmica. “Pessoa foi um escritor e um pensador fortemente focado no tema da civilização e da missão civilizacional da (sua) obra literária e de Portugal. Logo, abordou a civilização islâmica para perceber, interpretar e esclarecer o papel desta na história da civilização e, particularmente, na formação da cultura portuguesa, ibérica, europeia e universal”, esclareceu Boscaglia.

Com Nietzsche também não foi muito diferente. À semelhança de Pessoa, o filósofo alemão apresentou “um olhar amigável para com o Islão contraposto a uma crítica ao Catolicismo”. Em alguns momentos, os textos de Nietzsche parecem mesmo “dialogar com as passagens em que Pessoa se refere aos ‘árabes nossos maiores’ e designa a chamada Reconquista como um ‘crime'”, salientou o investigador italiano.

Para Fabrizio Boscaglia, Pessoa e Nietzsche são “autores e obras que dialogam e que nos podem ajudar a perceber como os intelectuais europeus abordaram o Islão entre finais do século XIX e inícios do século XX, num período caracterizado por dinâmicas históricas (por exemplo, a Primeira Guerra Mundial) que influenciaram as décadas sucessivas, logo a nossa contemporaneidade“.