Parece de propósito. Camisa azul aberta até ao umbigo, camisola interior a ver-se, calças mal seguras com um cinto, Eduardo avança vagarosamente com uma travessa de bacalhau demolhado. Ali perto, num sítio em que o chão está negro do hábito, a fogueira acesa põe a água de uma panela de ferro aos saltos. Já lá estão cebolas, tomates, pimentos, alho e batatas. Falta, portanto, a estrela da caldeirada, que Eduardo leva lentamente na bandeja de metal: o bacalhau.
Parece de propósito. Enquanto o petisco apura na panela, a uns 30 metros de distância são as retroescavadoras que não param. Veem-se montes enormes de terra e já nenhum vestígio do que ali existiu durante décadas: as secas de bacalhau. Agora, não tarda, todo este terreno vai ser um condomínio de luxo com o idílico nome de Praia do Sal – Wellness Resort. São cem apartamentos com vista sobre o Tejo e uma panóplia de serviços: piscina de água salgada, ginásio, ciclovia, jacuzzi na varanda, hortas, praia quase exclusiva… Alcochete jamais? Isso era noutros tempos. O objetivo da promotora deste projeto é provar o contrário, que é possível viver a vinte minutos de Lisboa e ter qualidade de vida. Resumindo: Alcochete toujours.
“Ah pois, isto é para malta com papel, não é para a gente.” Eduardo já pôs o bacalhau ao lume e agora olha para o terreno vizinho com um certo ar sonhador. Hoje em dia, ele e a mulher, sentada num sofá dentro de um enorme armazém, estão encarregados de guardar as salinas de Alcochete, que ficam mesmo em frente ao sítio onde o bacalhau coze. Noutros tempos, quando Eduardo se perdeu de amores por aquela alcochetana e decidiu abandonar o Alentejo natal, foi nas secas de bacalhau que começou por fazer vida. Trabalhou em todas. Na que vai ser um resort (antiga Bacalhau de Portugal), na Pescal e na Sociedade Nacional de Armadores de Bacalhau. Esta última era a maior e, à semelhança das outras, está votada ao abandono.
Atualmente com 70 anos, Eduardo até está contente com as mudanças que se avizinham. “Vinham para aí drogar-se”, comenta, ao mesmo tempo lançando o braço para o ar em sinal de displicência. A única coisa que hoje resta de outros tempos são moinhos, que aliás dão nome à praia. Mesmo junto ao futuro condomínio há um, completamente grafitado e degradado, cuja sorte não vai melhorar tão cedo.
O futuro é (sempre) já ali
“A margem sul tem futuro.” Foi uma frase mais ou menos como esta que José Manuel Vicente ouviu há quase vinte anos durante uma patuscada no Samouco, quando o filho andava de namoro pegado com uma rapariga da terra.
Muitos anos antes, outra pessoa dissera algo semelhante. “A margem sul do Tejo era a região ideal para a laboração e transformação de todas as matérias primas produzidas pela rica província do Alentejo”, mas Alcochete não se industrializou como os concelhos vizinhos, admitia o presidente da câmara local em 1941. “Nesta conformidade, continuou o concelho de Alcochete quase limitado às suas tradicionais fontes de vida: cultura das terras, a lavra das salinas e o tráfego do rio.”
Francisco Leite da Cunha, professor primário que seria autarca de Alcochete o tempo suficiente para vender os terrenos às empresas bacalhoeiras, fez um diagnóstico da situação vila e traçou-lhe o destino. “A câmara reconhece como sendo uma necessidade vital o estabelecimento de indústrias na área do concelho”, disse na reunião autárquica de agosto de 1941 em que se aprovou a chegada das secas de bacalhau a Alcochete. O processo, lê-se em notícias da época, não foi pacífico e gerou algumas desconfianças, mas a indústria chegou mesmo à cidade piscatória durante a década de 1950.
Enquanto trabalhador das secas, Eduardo era caso raro. Por ali trabalhavam sobretudo mulheres, e muitas vinham de terras bem longínquas: Aveiro, Viana do Castelo, Murtosa… Recentemente, aliás, a Câmara Municipal da Murtosa realizou um documentário sobre essas mulheres que trocaram a terra natal por Alcochete em busca de melhores condições de vida.
Oh là là, Lisbonne c’est ça
De 1941 passou muito tempo e de 1998 a 2016 também. Os últimos 18 anos foram suficientes para que as terras a sul de Lisboa mudassem radicalmente. Primeiro veio a Ponte Vasco da Gama, e esta trouxe gente, blocos de apartamentos, especulação imobiliária, comércio. Trouxe o Freeport, outlet polémico nos tribunais mas acarinhado pelos consumidores. No autocarro que apanhámos para chegar a Alcochete, oito dos cerca de 15 passageiros eram chineses. Saíram todos no centro comercial das marcas de luxo a preços baratos.
Há uma referência ao Freeport na brochura do condomínio Praia do Sal. Aparece listado como uma das atrações de Alcochete e é sobretudo um piscar de olho aos potenciais clientes estrangeiros. Helder Letra, diretor comercial da imobiliária que promove o projeto, faz questão, no entanto, de sublinhar que o resort não é só para francês ver. A empresa chama-se Maison au Portugal nos mercados francófonos e Casa em Portugal no mercado português. O site do empreendimento só tem duas opções de idioma: português e francês. Em duas ocasiões, encontramos Helder a usar a língua de Baudelaire para convencer casais a comprar uma casa. As aparências iludem. “Apesar de ter muita procura estrangeira, temos também aqui muitos portugueses. A maioria dos compradores são portugueses”, explica Helder Letra.
No futuro condomínio, um T1 tem o custo mínimo de 177 mil euros e um T4 não fica por menos de 600 mil. O preço pode ser elevado para muitas bolsas, mas quem o paga terá um “projeto totalmente único”, em que há “um estado de espírito muito importante”, que é o “respeito pelo ambiente”. Com a maquete ao lado, Helder explica: todas as demolições foram feitas com triagem seletiva, o empreendimento terá painéis solares em todos os telhados e o projeto é, na globalidade, de categoria energética A+.
Sinais de mudança
Apesar do que o filho lhe disse sobre o potencial daquela zona, José Manuel Vicente ainda demorou um tempo a convencer-se de que Alcochete era uma terra que valia a pena. “Quando eu cá cheguei só havia vacas”, conta junto à vedação do terreno onde as retroescavadoras se movimentam. Mesmo atrás deste sítio há um Fórum Cultural de construção relativamente recente e, a não muita distância, uma grande urbanização que nem está acabada. “Não havia nada, só terrenos livres.” O filho lá o convenceu a ir ver um apartamento num bairro em construção, coisa ainda rara na altura, em que as atenções estavam todas viradas para a Expo 98, na outra margem do rio. José Manuel foi uma vez e não ficou deslumbrado. À segunda, mudou de ideias. “Fiquei rendido com o por-do-sol.”
A paisagem que se vê de Alcochete começa, a norte, no Carregado, e acaba, a sul, mais ou menos em Alcântara. Veem-se as duas pontes de Lisboa, o Cristo Rei, as torres do Parque das Nações, as Amoreiras, o Panteão Nacional… Uma vista idílica, aliada à “calma e sossego” da zona, convenceu José Manuel Vicente a vir. Mas os sinais de mudança começam a assustá-lo. “A história do aeroporto trouxe muita gente.” A construção aumentou ainda mais, as casas começaram a não ter saída e já são muitas as tabuletas de venda espalhadas pela vila. “Já não há sítio onde estacionar um carro”, diz José Manuel, que viveu muitos anos em Lisboa e está a pensar seriamente em voltar para a capital.
Em contrapartida, Helder Letra fala de um futuro aliciante que já conseguiu atrair muitos compradores. Aos receios de José Manuel Vicente, o diretor comercial da Casa em Portugal contrapõe com os números. Quase todos os 60 apartamentos colocados à venda na primeira fase já estão reservados, seguem-se os 40 restantes e, mais tarde, um aparthotel. A população desta zona vai alterar-se definitivamente. O que isso vai significar para a vila de Alcochete ainda é uma incógnita. A assistir a tudo na primeira fila, a olhar para “a malta com papel” que aí vem, vai estar Eduardo, o guardador de salinas. Quem sabe, a comer uma caldeirada de bacalhau.