É bruto e abre a porta rápido. Tem a cara fechada, ar de poucos amigos, carrancudo e chateado. Pausa durante um segundo, os olhos como facas que fitam os dois tipos que estão ao fundo da sala. Quando os vê impávidos leva a mão direita à cintura, afasta a aba do casaco, fecha a palma na pega do revólver que tem preso no cinto. Estica o braço e aponta-a aos alvos. Está irritado e, ao mesmo tempo que dá um par de passos em frente, o timbre de voz aumenta uns tons, eleva-o à escala de gritos. Sai-lhe palavreado feio: “‘Tá tudo preso, seus cabrões!”. É aí que agarra a cena pelo colarinho, dá-lhe um safanão e reclama-a, de vez, como sua.

“Toca a andar daqui para fora. Tudo preso, ouviram?! Você também!

Vá, andem! Zarpem, zarpem, vá, vá! Andem!

Mexe-te cabrãozinho, mexe-te, mexe-te, mexe-te!”

São cerca de 15 segundos. A cena vem e vai num instante, um ápice que transborda com a presença de um dos três atores que surgem diante da câmara. A cena surge em “Os Imortais” (2003), filme em que Nicolau Breyner é Joaquim Malarranha, um inspetor da Polícia Judiciária cuja vida se agita antes da hora da reforma com a perseguição a quatro ex-comandos que planeiam assaltar um banco. O tempo encarregou-se de fazer desta cena, que apanha boleia de palavrões, gritos e uma arma, uma das mais populares da carreira do ator que, esta segunda-feira, faleceu aos 75 anos.

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Essa cena foi resultado da segunda vez que o ator se juntou ao olhar e à realização de António-Pedro Vasconcelos. A primeira fora em “Jaime” (1999) e voltariam a trabalhar quatro anos depois, em “Call Girl” (2007) quando Nicolau Breyner empresta a voz grave a Menezes, o autarca que uma acompanhante de luxo tenta convencer, seduzindo, a dizer que sim à construção de um empreendimento de luxo. De presidente de câmara passa a realizador de televisão em “A Bela e o Paparazzo” (2010), um personagem que o faz aparecer durante menos tempo na tela. Tal e qual em “Os Gatos Não Têm Vertigens” (2014), derradeira participação que tem com António-Pedro Vasconcelos.

Depois de estudar no Conservatório de Lisboa e de aplicar o aprendido nos palcos do teatro, o ator tentou o cinema. Aos 21 anos tem um pequeno papel em “Raça”, (1961) filme de Augusto Fraga, em que partilha gravações com Ruy de Carvalho. No ano seguinte trabalha com Raul Solnado em “Dom Roberto” (1962), único filme realizado por José Ernesto de Sousa. Participou em mais uma dezena de produções até à década de 70, onde as peças de teatro e (sobretudo) a série “Sr. Feliz e Sr. Contente” (1975) puxaram pela fama de Nicolau Breyner — é aí que contracena semanalmente com um jovem de Herman José.

Dedica-se mais aos palcos e no ecrã que o leva a casa dos portugueses — em 1982 ajuda a escrever e tem um papel em “Vila Faia”, a primeira telenovela portuguesa — até o cinema voltar o chamar. Fernando Lopes adapta o livro de Mário Zambujal ao cinema e dá-lhe o papel de Pedro Justiceiro em “Crónica dos Bons Malandros” (1984). A televisão continua a multiplicá-lo por diversos projetos. As interpretações caem no goto do público. A cara de Nicolau Breyner torna-se popular, conhecido pelos portugueses e familiar na produção artística nacional.

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O ator chega a atuar em nome próprio em “Eu Show Nico” (1988) e em “Nico d’Obra” (1993-1996). Entra em “Jaime” no mesmo ano (1999) em que participa em outra longa-metragem, “Inferno”, filme que precede o papel em “Os Imortais”, que lhe vale um Globo de Ouro. É o primeiro de três e os restantes surgem ambos em 2004, como reconhecimento das interpretações que faz em “Kiss Me” e em “O Milagre Segundo Salomé”.

A partir daí começa a entrar na maioria das grandes produções cinematográficas em Portugal: é o Padre Dias que não tem mão no Padre Amaro por lhe dar um mau exemplo (“O Crime do Padre Amaro”, de 2005); interpreta o escritor Eduardo Coelho no retrato da sociedade portuguesa no final do século XIX (“O Mistério da Estrada de Sintra”, em 2007); faz de presidente abastado e de práticas reprováveis que adapta o livro de Carolina Salgado ao cinema (“Corrupção”, em 2007); deixa crescer um bigode para ser o autarca seduzido pelos dotes de Soraia Chaves (“Call Girl”, em 2007).

João Nicolau de Melo Breyner Moreira Lopes

É nesse ano que passa a estar tanto tempo à frente como atrás da câmara. Estreia-se como realizador com “Contrato”, filme em que também interpreta um chefe da máfia que tem mão na Península Ibérica e está na mira de um homem contratado para o assassinar. Volta a realizar em 2012, com “Teia de Gelo”, e no ano seguinte, com “Sete Pecados Rurais”, em que até chega a interpretar o papel de Deus. Pelo meio aparece em “Comboio Noturno para Lisboa“, filme de produção internacional, no qual partilha créditos com Jeremy Irons e Christopher Lee.

O último filme com Nicolau Breyner a ir às salas de cinema é “Virados do Avesso”, em 2014. Haverá mais três que vão nascer em breve e que, segundo o site IMDB, estão em fase de pós-produção: “Expatriate”, sobre a história de um empresário luso-americano que é deportado para Portugal; “Before Dawn”, que conta a história da vida de um escritor judeu e austríaco; e “A Ilha dos Cães”, que faz colidir o passado e o presente de Angola numa ilha onde, em tempos coloniais, eram enviados presos revolucionários e, no presente, está um empreendimento turístico de luxo.