“Os alentejanos são apaixonados, por isso perigosos. O alentejano é um sentimental, que ama e odeia com a mesma força. E quando se sente picado…”. O pretexto era o tão polémico livro de Henrique Raposo sobre o Alentejo. De uma cajadada, Nicolau Breyner aproveitava para se definir e para definir o que é ser alentejano.
Nessa altura, em declarações ao Diário de Notícias, o ator pintava o retrato de um alentejano-tipo. “É um povo com muito sentido de humor. Não há nenhum almoço alentejano que não acabe com alentejanos a contar anedotas e a cantar canções alentejanas”.
Nunca se esqueceu do Alentejo, mesmo depois de ter vindo para Lisboa, ainda criança. E nunca se esqueceu do que era ser alentejano. “Falamos imenso – somos uns tagarelas. Somos é calados na primeira aproximação. É reserva, é timidez. E boa educação. O orgulho [também]. Não dobram. Estamos fartos de ser os pobrezinhos que moram longe”. Falava assim mesmo, no plural.
E nunca esqueceu Serpa, terra onde nasceu em 1940. Ao Observador, Tomé Pires, presidente da Câmara Municipal de Serpa, fala de alguém que nunca desistiu de contribuir para tornar Serpa uma cidade melhor. “Nicolau Breyner sempre teve uma ligação muito forte a Serpa. Esteve sempre disponível para ajudar. Continuava a falar com quem sempre falou. Estava sempre presente”.
Volta e meia almoçavam juntos. E não raras vezes Nicolau Breyner confessava como “gostava de passar mais tempo” em Serpa. Faltava-lhe o tempo, mas não o empenho.
Recentemente, estava envolvido em dois projetos cinematográficos gravados em Serpa e noutras cidades alentejanas. Ia participar como ator no filme “Seara de Vento”, uma adaptação do romance de Manuel Fonseca, realizado por Sérgio Tréfaut.
Era esperado para uma sessão de gravações, a ter lugar entre março e abril. E por essa altura devia começar a fechar os últimos detalhes de um novo projeto, revela Tomé Pires. O ator ia vestir a pele de realizador e gravar um filme em terras alentejanas. Os atores seriam os alunos da sua academia, faltava apenas tratar logística. Não houve tempo, lamenta o autarca.
Mas o apoio de Nicolau Breyner a Serpa ia muito para lá do âmbito cultural, recorda Tomé Pires. Ainda há pouco tempo, o ator fez questão de participar na promoção da feira do queijo, mesmo que isso significasse ter de faltar a um almoço de família há muito acertado. “Nicolau Breyner era assim, ajudava em tudo que podia”.
Estiveram em campos políticos opostos em 1993, quando o “senhor contente” quase destronava os comunistas nessas eleições autárquicas. “Não era eu o candidato [da CDU]. Era o João Rocha. Mas já fazia parte do projeto CDU. [Eu e Nicolau] fomos adversários, mas nunca inimigos. Antes de sermos militantes de um ou de outro partido há uma ligação muito superior a tudo isso”. Essa ligação era Serpa.
A vontade de tornar o Alentejo a “Hollywood Europeia” foi um projeto sempre assumido. O objetivo era criar uma estrutura profissional de captação de produções de cinema para a região, como lembrava a Lusa, a propósito da morte do ator. O sonho nunca foi completamente concretizado.
O Alentejo como centro do mundo. Pelo menos, o centro do seu mundo. Em 2010, em entrevista ao Público, Nicolau Breyner falava da sua infância em Serpa, da “casa muito grande, com dois andares”, das criadas, sobretudo da criada Bia, “uma personagem espantosa”. Lembrava também “o cheiro do Alentejo, das estevas e do cheiro a verão”.
Foi criado numa família privilegiada. O avô era um “grande lavrador” e a família uma das mais abastadas do Alentejo. Mas nunca foi mimado, garantia nessa mesma entrevista. “A minha mãe e o meu pai educaram-me muito bem. Fiz uma vez uma birra à minha mãe, e subi as escadas a levar estalos até lá acima. Além disso, a minha vida em Lisboa, quando perdemos tudo, tornou-se difícil”.
A mudança para Lisboa, uma “cidade hostil”, moldou-o quase tanto como o Alentejo. A casa de dois andares foi trocada por um andar. A “moleza do Alentejo” pelos “carros e os elétricos” lisboetas que o “fascinavam”. A prosperidade no Alentejo pela perda.
“Viemos todos juntos para Lisboa. Depois as pessoas foram desaparecendo. O primeiro foi o meu avô, só viveu cinco anos em Lisboa (digo sempre que desistiu de viver quando veio para cá). De seguida a minha bisavó materna. Depois o meu pai, a minha avó e a minha mãe, que já morreu com 80 e muitos anos”, recordava na altura.
Nessa mesma entrevista, em que lembrava os verões do Alentejo, deixava um desejo. “Detesto o inverno. Muitas vezes digo da vida: ‘Quantos verões me faltam? Adorava morrer num daqueles dias chuvosos, feios, com vento, para não ter pena'”. Não foi bem assim: esta segunda-feira partiu com frio, sim, mas com o céu azul do Alentejo em Lisboa.