Texto republicado e alterado por ocasião dos 50 anos da crise académica de 1969.
17 de abril de 1969. A Universidade de Coimbra estava a inaugurar o Departamento de Matemática e o presidente Américo Thomaz seguiu para a capital dos estudantes com o ministro da Educação, José Hermano Saraiva, numa época em que a contestação estudantil estava em alta. Quando a comitiva chegou a Coimbra foi recebida por um mar de capas negras com cartazes em protesto. Estavam nas ruas e nas faculdades e não havia forma de o regime as ignorar.
Américo Thomaz entrou no novo edifício e discursou perante um público de apoiantes, até porque os estudantes foram mantidos fora da Sala 17 de Abril, onde a reunião estava a acontecer. No final do discurso, o presidente da Direcção-Geral da Associação Académica de Coimbra (Alberto Martins, hoje um destacado militante do PS, ex-ministro da Justiça) sobe para cima de uma cadeira com a capa aos ombros e diz: “Em nome dos estudantes de Coimbra, peço a palavra”. A palavra não lhe foi dada: o Presidente da República, mesmo atrapalhado, introduz o discurso do ministro das Obras Públicas e a sessão termina logo a seguir. Foi a gota de água: as vaias que acompanharam a saída da comitiva anunciaram o início da Crise Académica de 1969.
Ainda a 17 de abril, Alberto Martins foi detido e passou a noite na cadeia. A comunidade estudantil estava pronta para agir, mas fê-lo a partir de 22 de abril quando oito estudantes da Universidade de Coimbra foram suspensos e proibidos de assistir às aulas. A Assembleia Magna decretou luto académico e as aulas foram substituídas por reuniões e debates precisamente na sala nova da Universidade. O governo adjetivava as iniciativas dos estudantes como uma “onda de anarquia que tornou impossível o funcionamento das aulas”. E apesar de os meios de comunicação social estarem proibidos de escrever, falar ou mostrar o que se passava em Coimbra, alguns deles conseguiram fazê-lo de modo subtil. Foi o caso do Diário de Coimbra, que usava recursos estilísticos para explicar algumas operações que os estudantes levavam a cabo no centro da cidade.
Quando José Hermano Saraiva admitiu alguma fragilidade perante a revolta estudantil, a Universidade fecha mas mantendo o calendário de exames. A Associação Académica de Coimbra lança então um documento intitulado “Carta à Nação” que pede “uma universidade nova num Portugal novo” e equaciona uma greve aos exames. Foi como colocar todos os trunfos em cima da mesa: se os universitários decidissem mesmo boicotar o calendário de exames estavam a chumbar deliberadamente e a colocar um pé em África, o que representava uma ameaça direta de serem mobilizados para as Forças Armadas e enviados para a guerra colonial. Avançaram: mais de 5000 pessoas votaram a favor do boicote e menos de 200 anunciaram que iriam fazer os exames.
A Academia dividiu-se assim entre “grevistas” e “fura greves”: a 2 de junho – uma segunda-feira e o primeiro dia de greve – vários estudantes chegaram à universidade acompanhados pelos pais. Uns iam obrigados pelos próprios, que não queriam ver as propinas investidas em Coimbra a serem perdidas em nome de uma crise; outros porque temiam as consequências no final desta onda de revolta; um grupo importante fazia-o por convicção, como o liderado por José Miguel Júdice.
Ao longo dos dias de exames os estudantes agitaram a cidade: uns distribuíam flores pelos habitantes de Coimbra, outros lançavam balões com mensagens de ordem nas praças. A profusão era tanta que a Guarda Nacional Republicana invadiu o espaço urbano e chegaram até a circundar a Sé Velha de Coimbra. Em julho chegaram os números: quase 87% dos estudantes tinha faltado aos exames. Os outros 13% viram os seus rostos espalhados na cidade com o título de “traidores”.
Entretanto, a 22 de junho, realizava-se a final da Taça de Portugal: nas meias-finais – disputadas a 15 de junho – os estudantes da equipa da Académica tinham vencido ao Sporting por 1-0. Lisboa encheu-se de capas negras e de cartazes de protesto: no estádio, onde a Académica ia jogar contra o Benfica, esperava-lhes um enorme aparato policial. Mas não o Presidente: pela primeira vez, Américo Thomaz faltou ao evento e o jogo de futebol nem sequer foi transmitido pela RTP, ao contrário do que já então era habitual. No final, os estudantes saíram derrotados por duas bolas a uma, mas não foi essa derrota que impediu os jogadores de colocar as capas aos ombros, em sinal de luto.
Apesar da persistência dos estudantes, muitos deles acabariam por ser obrigados a abandonar os estudos e a seguir para África. A Estação de Coimbra-B encher-se-ia de antigos universitários que agora iriam vestir a farda portuguesa noutro continente. Nem nesse momento os jovens se calaram: gritavam em protesto contra a guerra e contra o regime. Em 1987 a Assembleia da República Portuguesa votou que o dia 24 de março passasse a servir de homenagem à comunidade universitária que lutou pela liberdade em Portugal: estava instaurado o Dia Nacional do Estudante.