Banda: Linda Martini
Álbum: Sirumba
Editora: Universal

sirumba

Sirumba era aquele jogo de rua em que se desenhavam quadrados no alcatrão separados por corredores. Havia duas equipas: uma dividia-se pelos quadrados, outra tinha que percorrer o jogo de uma ponta a outra sem neles tocar. Os desgraçados que estavam dentro dos riscos tinham que tocar nos que fugiam para os expulsar. Das duas uma: ou perdiam todos ou ganhava o resistente que sobrevivia ao difícil percurso. Na altura, a sirumba era só uma ótima desculpa para não estar em casa. Agora, “Sirumba” tem letra maiúscula e pode até ir entre aspas, dependendo do livro de estilo. É o título de um disco em que o primeiro tema canta “não quero ser doutor”, que parece ter sido gerado numa garagem, tal como se fazia há 20 anos, mas com o peso que o danado do tempo insiste em carregar; é drama-rock como só os Linda Martini conseguem fazer, porque a melancolia eletrificada não é para todos, pelo menos se o objetivo é contaminar quem ouve.

“Ter um bom carro, um bom emprego”. No geral, é uma ideia que até parece brilhante, mas aqui neste “Sirumba” é um verso embalado a acordes menores, como se o punk rock também fizesse slows, para bailes de gente desgraçada que dança agarrada sem vontade. A canção é “Bom Partido” e continua: “Fomos felizes na medida em que se pode ser feliz, fiz dele toda a minha vida mas nunca foi isto que quis.” E enquanto a banda força o tom trágico da história — de quem só fez o que não queria e nem sabe bem porquê — os que ouvem ficam a tentar perceber se também terão lugar naquele triste conto. O álbum é a banda sonora para um desafio do gato e do rato sem fim, para o dia-a-dia multiplicado por muitos anos, todos os anos. É uma vida inteira desdobrada em nove temas. Não é conceptual nem é cronológico mas é difícil não ouvir estas canções sem ver gente desconhecida que parece familiar, tudo ao mesmo tempo. E há poucas coisas melhores que encontrar momentos destes num disco. É assim que estes objetos se tornam algo mais e se fazem insubstituíveis.

“Sirumba” soa a trabalho, muito trabalho. Tem a atitude “saiam da frente que não sei para onde vou” que os Linda Martini sempre vestiram mas também está cheio de cuidado e brio, tudo muito pensado, de recantos e surpresas. E funciona sempre na mesma medida. Pode ser o mosh pit óbvio do “Unicórnio de Santa Engrácia” ou o mais ambicioso exercício instrumental de “Farda Limpa”, não há separação, não interessa dividir porque não há como chegar a um dos lados sem passar pelo outro. Vai tudo dar a “Dentes de Mentiroso”, uma maravilha de guitarras em luta contra a bateria (ao vivo é capaz de levar uns quantos a querer formar uma banda, é o costume); e depois seguimos para a última “O Dia em que a Música Morreu”, uma despedida com mais de seis minutos, porque se é para dizer adeus que seja no meio de um caos sentido e distorcido, quanto mais prolongado o êxtase melhor.

Ainda sobre o tal jogo com riscos no alcatrão: a sirumba não era mais que uma variante do clássico polícias-e-ladrões. No fim, quem conseguia correr sem ser apanhado ganhava e tinha que gritar “sirumba”, bem alto, para todos ouvirem que havia um vencedor na área. Os Linda Martini são os campeões disto tudo. Podem gritar o que quiserem, pode ser “sirumba” ou uma das muitas frases sacadas destas canções que davam T-shirts de génio: “no lugar do morto tudo é contra-mão”, “sair a meio é meia foda”, “a vida acontece aos outros” ou “cá se vai andando em lume brando”. Lições de vida com poucos caracteres, para serem lidas a correr e ainda assim ficarem na memória. Tal e qual a sirumba.

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