Título: “O Livro da Selva”
Autor: Rudyard Kipling
Edição: Livros do Brasil
Páginas: 199
Preço: 13,30€

kipling

Rudyard Kipling, o mais novo prémio Nobel da literatura de sempre, o único vate de quem melhor se pode dizer que é celebrado condicionalmente do que incondicionalmente – ou não fosse o condicional “se” o mais conhecido dos seus poemas – parecia ter uma capacidade premonitória: quem escreve O Livro da Selva já parece prever que terá o seu nome entregue aos bichos.

E, de facto, o lugar literário de Kipling está tão bem fixo quanto a sua viajada existência: uns exalçam o seu poder evocativo, outros mofam-no como banal aventureiro com arremedos românticos; uns tomam-no por pó resistente, grudado à passadeira das glórias, que o tempo se tem esquecido de aspirar; outros aspiram ao seu estilo activo, de narrativa empolgante e experimentado exotismo.

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Apesar de ter dado o peito a todos os galardões literários, nem estes o protegeram de algumas balas mais maliciosas.

A União Indiana, provavelmente, torceria o nariz a este zelota da coroa bretã a oriente, nado e criado (pelo menos em parte) na Índia britânica. Kipling tem, de facto, uns certos modos coloniais, vitorianos, um desprendimento viril e um frenesi de criança travessa que não quadram com o leitor moderno. Não há nevroses filosóficas nem ademanes culturalmente respeitadores, um bom par de patadas é o seu recurso pedagógico mais eficiente, e instrui com pancadaria a velha moral do Homem da Velha Albion: honra, disciplina, obediência, ideia de que a liberdade vem da autoridade e tudo quanto possa parecer bárbaro e animalesco – afinal, é o livro da Selva — às mentes que os próximos séculos deixaram para trás para nos instruírem.

O mais curioso, no entanto, é que entre os maiores críticos de Kipling estão vários autores que à primeira vista seriam seus aliados ideológicos, e entre os maiores entusiastas, alguns previsíveis inimigos. Tão estranho como ver Orwell defendê-lo é ver Chesterton atacá-lo, ou T. S. Eliot debuxar uma tímida defesa do autor de Kim. Orwell, embora não concorde com a sua jactância imperialista, matiza-a com a atmosfera da época; Eliot comporta-se mais na defensiva – ele, que nunca teve pruridos em defender Maurras, por exemplo, denota um certo desconforto com a forma como algumas populações são tratadas nos escritos de Kipling.

Isto porque, de facto, Kipling tem uma certa frieza que impressiona. Mesmo no Livro da Selva, destinado a bisonhas criancinhas, não se furta a encarar a morte, e em lente aproximada. Os heróis esfolam tigres, espezinham crias indefesas e estão prontos para renhir com quem precisar. O mundo do Livro da Selva não tem nada de sentimental: Mowgli é expulso da alcateia e do convívio humano, acaba entalado entre os dois mundos, em busca de prodígios cinéticos numa solidão que aflige o leitor mas não parece afligi-lo a ele. É este, em parte, um dos mistérios de Kipling. O escritor tem grande propriedade narrativa, empolga, envolve o leitor nas aventuras, nas folhagens da selva ou nas cambraias coloniais, mas não nos poupa à sua dureza. A literatura que se aparta das cidades, num caso como o indiano, dificilmente se dedica à serena contemplação da alma ou ao bucolismo de avena descansada; longe das cidades significa perto da selva, de acção e de morte. O Livro da Selva é um livro de perigo iminente e por isso várias vezes assustador. É certo que só os maus morrem; o que assusta neste livro não é a morte arbitrária ou a falta de moral, mas sim a clareza delas. Não só os maus morrem, como os bons matam. Kipling tem uma moral quase militar, recta, sem ambages filosóficos nem grandes problemas morais. Aquilo que as pessoas – ou os animais – merecem, têm-no. Sejam látegos dolorosos, como Mowgli quando se mete com os macacos, seja a glória doméstica – como é o caso de Rikki-Tikki-Tavi depois de matar três cobras e umas quantas crias com descrição pormenorizada de cada golpe.

O adulto menino

O Livro da Selva é um livro de grandeza; quer os contos que giram a volta de Mowgli — o “cachorro de humano” sem lugar nem entre os que o criaram, nem entre os que o conceberam — quer os contos seguintes, são de feitos gloriosos: uma foca messiânica que arrasta uma população inteira para um mar virgem, um rapazote que presencia a “dança dos elefantes” nunca antes vista pelo Homem, um manguço verdugo de serpentes e uma ordenada submissão das individualidades ao todo militar; tudo histórias dignas de um cronista ambicioso, que o autor embeleza sempre com um toque final de poesia. Curiosamente, é nesta grandeza que Chesterton lobriga o calcanhar vulnerável de Kipling. Em Heretics, Chesterton defende, com o seu sentido de humor inimitável, que Kipling é um escritor a quem falta Humanidade. Por ser um cosmopolita, conhecedor de vários continentes, é capaz de admirar o mundo mas incapaz de perceber um país; capaz de amar a Humanidade, mas incapaz de amar um Homem. De facto, as suas personagens têm sempre um sainete imperial, fadado para as conquistas e para o grande plano. O Livro da Selva é quase um anal dos grandes feitos dos animais, mas pouco atento às riquezas do quotidiano.

Apesar disso, será talvez exagero acusá-lo de falta de Humanidade. Kipling tem uma humanidade muito própria, uma mistura entre uma moral cândida e desbragada e uma atracção timorata pela aventura, ao mesmo tempo inconsciente e descomplexada. Trata-se do mesmo carácter que se encontra noutro livro encantador de Kipling, Stalkey & Company, as suas memórias do colégio, traduzidas e retalhadas pela Inquérito sob o nome de Três como Tantos; um carácter fascinado pela grandeza e com um genuíno gosto pela vida, pelo ar livre e pelo mundo natural. E o mais interessante nisto está na forma como Kipling o apanha: as crianças, fascinadas pelas caçadas heróicas e a liberdade adulta, cruzando as suas ambições com a visível ternura do narrador pela infância. De tal modo que, apesar de toda a construção da história estar centrada noutros pontos – as tradições indianas, as vaporações da pele britânica em clima hostil, os perigos da selva, o entono dos chefes, a bravura e a intrepidez – recende ainda assim uma estranha melancolia de aspirações trocadas: a criança que anseia ser adulta, e o adulto que só queria voltar à infância.

Carlos Maria Bobone é licenciado em Filosofia. Colabora no site Velho Critério.