No fim de semana seguinte à magnífica noite de estreia no MEO Arena, o espetáculo “Moura” apresentou-se no Coliseu do Porto para duas noites de emoção e sentimento com pronúncia do norte. O público esteve em maior número no sábado, mais perto das três mil pessoas, para se envolver na narrativa de metamorfose que Ana Moura concebeu para a promoção do seu sexto álbum.

Na primeira noite o alinhamento manteve as linhas de força que observámos em Lisboa, incluindo a participação especial do bailarino Romeu Runa e uma chuva de borboletas de mil cores nos instantes finais. Havia entre o público alguns que, depois da paixão no MEO Arena, quiseram rever Ana Moura desta vez no Coliseu do Porto. O conhecido apresentador João Baião era um deles, saiu de Carnaxide depois de fechar o programa na SIC e entrou na sala quando ainda se ouvia a primeira canção. A “Moura Encantada” chegou na voz da fadista que apareceu como é costume, em movimento suave e silhueta traçada pelos figurinos cintilantes, estreados há uma semana, desenhados por Filipe Faísca.

O brilhantismo dos músicos superou o dos vestidos, como se esperava numa exibição em que os fados tradicionais pontuaram o desfile de canções do novo disco Moura. Mais de duas horas em palco e estava a chegar a última canção da noite, antes do regresso para o encore. O sempre aguardado “Dia de Folga” haveria de se estender por largos minutos com a colaboração de quatro meninas que subiram ao palco para cantar o refrão com Ana Moura. A artista acentua o momento de ternura contando que recebe inúmeros vídeos de crianças a cantar a sua música nas redes sociais. O fado nunca passou de moda, está para além dela como uma obra clássica. Pode ter andado escondido mas agora está a ter a projeção que merece, e as crianças (que têm “os olhos de Deus”), são o belo testemunho de um futuro promissor. São a prova de que o fado já não vive apenas em salas escuras.

A noite de sábado não seria igual, como aliás nenhuma destas atuações pode ser, dado o grau de envolvimento emocional que, tanto a fadista como os músicos, depositam em cada performance. Depois, os palcos são diferentes e os públicos também. E no norte temos esta particularidade de fazer a festa, ainda antes de a música acabar. Quando a artista pede mais, a animação na plateia é garantida. Ao alinhamento juntaram-se duas canções novas: “Não quero nem saber” (letra de Sara Tavares e música de Kalaf Epalanga) e a “Cantiga de abrigo” escrita por Samuel Úria.

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Quando saúda o Coliseu, Ana recorda as raízes familiares em Amarante e assume que também ela tem “um lado tripeiro”. O jogo de palavras com o apelido de família é inevitável, afinal é uma Moura a encantar as hostes da Invicta. A história do fado dançado e o tema escrito pelo maiato Miguel Araújo deram o pretexto para a primeira canção acompanhada pelo público. Aplausos a dois tempos, assim é o povo do norte. Chega “Desamparo”, uma canção que parece feita para ouvir no descapotável, enquanto guiamos devagar numa estrada marginal, num final de tarde ameno. Depois a cantora destaca a presença ilustre de Pedro Abrunhosa, autor de temas como “Agora é que é” e “Tens os olhos de Deus”.

O trecho de fado tradicional voltou a incluir “De quando em vez” de João Maria dos Anjos, naquela que é a fase da atuação mais esperada pelo público conhecedor e, já agora, conservador. O mesmo que a seguir se deixa envolver na representação futurista de “Maldição”, exímia nas mãos de Ângelo Freire, dando o ritmo ao movimento corporal de Romeu Runa que contracena com Ana Moura estática, parecendo Afrodite vestida de negro. Discutível para alguns, épico para muitos, este foi apenas um dos muitos momentos que comprovam a universalidade do fado e o modo como ele pode ser nuclear em novas formas de expressão artística.

A meio da atuação, a já clássica “Guitarrada” – composição instrumental que permite destacar a sonoridade de cada músico, à vez, e dá tempo à cantora para fazer uma pausa – pareceu-nos mais curta do que na primeira noite. “Isto hoje parecia heavy metal”, comentava Mário Costa já nos bastidores, depois de terminado o espetáculo na sexta-feira. O baterista de Viana do Castelo aplicou-se de tal forma que fez tombar os pratos da bateria durante o solo, valendo-lhe a mão de João Gomes, ao seu lado nas teclas do Hammond (veja a imagem desse momento na fotogaleria acima). No sábado a bateria foi poupada mas a quinta corda do baixo de André Moreira compensou, e é sempre interessante ver como o público reage à execução dos músicos em cada instrumento.

“Eu entrego”, de Edu Mundo, marcou o regresso da fadista, agora do lado branco do guarda-roupa. Foram nove canções até à apoteose esperada com o “Dia de Folga”, depois de momentos altos como o “Valentim” ou a sorte de ”Os búzios”. A banda continuava a tocar em loop enquanto Ana fazia as honras da casa. Primeiro apresentou os músicos e depois fez os agradecimentos a todos os elementos da equipa, do som às luzes, passando pelo colaboradores mais próximos e pelos roadies. A todos Ana Moura agradece com a generosidade a que nos habituou, saindo de cena a cantar.

O encore manteve o formato, com o público a irromper numa ovação a meio do sempre distinto “Loucura”. E chegámos ao “Desfado” com o Coliseu em pé a aplaudir, muitos dançavam quando choveram milhares de borboletas, símbolo da metamorfose que ali se operou. Faltava só o “Fadinho Serrano” para a despedida, altura de desafiar Ângelo Freire a dedilhar à velocidade do som. Bem-humorados, a brincadeira entre eles deixa-nos ver o virtuoso da guitarra portuguesa “limar as unhas” com sonorização de Mário Costa na percussão. A música segue no improviso até ao final, os músicos unidos, a fadista a dançar com o swing que tão bem a caracteriza. Incansável, agradece ao Porto e às suas gentes por terem estado ali a fazer parte de um “momento eterno”. Com a mão no peito agradece, embevecida, e soltam-lhe mais uns “ah fadista!” Para a história destas duas noites ficam momentos raros, num Coliseu que embarcou na narrativa, emocionado pela verdade da fadista e pela fineza dos músicos.

“Moura” e o espetáculo a que deu origem significam a consagração daquela que é, para muitos, a melhor artista portuguesa da atualidade. A digressão parte agora para Londres, seguindo depois para São Francisco, nos Estados Unidos da América, onde irá permanecer na estrada (ou melhor, entre voos) com espetáculos em Boston e Nova Iorque, onde Ana Moura vai regressar ao lendário Carnegie Hall, mas desta vez para atuar na “sala 1”. Com o objetivo de ser apresentado um pouco por todo o mundo, “Moura” volta depois ao Velho Continente, com passagens por França, Áustria, Suíça e Alemanha, a que se junta uma data recentemente confirmada no Sultanato de Omã.

A nós apenas resta desejar que a saudade os acompanhe, afinal é dela que vive a alma fadista.