Naquele que foi o seu primeiro discurso numa sessão solene de comemoração do 25 de Abril, o único deputado do Pessoas Animais e Natureza (PAN), André Silva, usou um exemplo pouco provável: o Butão. Isso mesmo, o país montanhoso de 740 mil habitantes que faz fronteira com a Índia e a China, e que não fica muito longe do Nepal e do Bangladesh, e cuja capital é Timphu.

“Olhemos o caso da democracia butanesa”, disse André Silva, fazendo de seguida uma concessão: “Demasiado jovem e culturalmente distante, bem sei”. E depois explicou-se:

“[A democracia butanesa] nasceu num princípio da boa governança, que encerra em si as ideias de eficiência, transparência, responsabilidade e profissionalismo, integrando novos indicadores que assumem um caráter de maior importância na economia e no desenvolvimento do país, e que criam pontes entre o progresso e a tradição, complementando os indicadores exclusivamente como o PIB, com outros que procuram detetar os níveis de bem-estar mental, emocional e físico das populações.”

No seu discurso, o deputado do PAN quis fazer referência ao Índice Nacional de Felicidade, criado em 1972 pelo rei Jigme Singye Wangchuck que, sob a aura de reformador, criou aquele medidor de qualidade de vida. Para chegar ao cálculo final, são pesadas variáveis como a economia e a cultura, a política e o ambiente. A sigla inglesa é GNH (Gross National Help), mas também já tem sido ironicamente descrita como “Government Needs Help”, o que aponta para a possibilidade de este índice ser pouco fiável e de ser usado a favor do Governo butanês.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Em 2015, 8,8% dos butaneses disseram estarem “infelizes”, 47,9% consideraram ser “marginalmente felizes”, 35% disseram ser “muito felizes” e 8,4% disseram estar “profundamente felizes”.

Se a maioria dos butaneses afirma estar “marginalmente feliz”, muito feliz” ou até “profundamente feliz”, esse não deverá ser contudo o caso da minoria lhotshampas, que vive no Sul do país e tem origens nepalesas.

De acordo com o site The Diplomat, esta minoria é vítima de discriminação étnica, que começa logo no bilhete de identidade, documento que tem sete categorias. Entre as categorias 1 e 4, o acesso a direitos e infraestruturas parece estar assegurado. Mas para aqueles que estão nas outras (4, mulher estrangeiras casadas com homem butanês; 5, homem estrangeiros casados com mulher butanesa; 6, crianças adotadas; 7, estrangeiro) o acesso a um passaporte é dificultado por questões de segurança. E aqueles que têm a categoria 7 (estrangeiros) não têm direito à educação nem podem trabalhar.

Geralmente, os lhotshampas recebem cartões de identidade entre as categorias 4 e 7. Ao todo, representam 20% da população total de 740 mil habitantes.

Um levantamento demográfico do país — vulgo, censos — realizado em 1988 teve como consequência a discriminação de elementos da comunidade étnica nepalesa, classificados como imigrantes ilegais. No ano seguinte, o uso do nepalês nas escolas passou a ser proibido. Em 1990, ocorreram várias manifestações contra o Governo no Sul do país. Seguiu-se um período de violência, durante o qual vários lhotshampas fugiram para o Nepal, onde passaram a viver como refugiados. Estima-se que tenham sido mais de 100 mil as pessoas que saíram para o exílio. A situação arrasta-se até hoje, com estes refugiados a não conseguirem voltar ao Butão.

“A situação dos refugiados butaneses (de origem nepalesa) tem sido uma das crises de refugiados mais longas e ignoradas em todo o mundo”, diz a Amnistia Internacional. “Apesar de várias negociações bilaterais entre os governos do Nepal e do Butão, ainda está longe o uma solução que seja duradoura e que respeite os direitos dos refugiados butaneses.”

Um dos últimos países a abolir escravatura; estrangeiros só entraram nos anos 70

O caso dos refugiados butaneses com origens étnicas nepalesas está longe de ser o único problema do Butão.

Vamos por partes. O Butão é, de facto, uma democracia “demasiado jovem”, como disse André Silva na cerimónia do 25 de Abril. Mais concretamente, a democracia surgiu naquele país em 2008. A caminhada até lá foi longa.

Para se ter uma ideia, o Butão foi o sétimo país que aboliu a escravatura há menos tempo. Corria o ano de 1958, era ainda o país uma monarquia absolutista. Em 1973, foi finalmente permitida a transmissão de rádio. E só no ano seguinte é que o Butão abriu pela primeira vez as fronteiras a turistas estrangeiros. Além, disso, apenas em 1989 é que as autoridades deixaram de multar as pessoas que não vestissem o traje nacional butanês na rua. Finalmente, em 1999 chegou a internet e a televisão, mesmo que com alguns limites. Em 2010, a produção, venda e consumo de tabaco passou a ser punida com pena de prisão. Tudo isto faz parte do objetivo de fechar o país em si mesmo, alheio a influências estrangeiras e capaz de preservar as suas tradições e características.

Isso também foi visível até há pouco tempo no panorama político. Só em 1998 é que o rei Jigme Singye Wangchuk abriu mão da monarquia absoluta e cedeu poderes à assembleia nacional.

O rei do Nepal, Jigme Khesar Namgyel Wangchuck, tomou posse em 2008, depois de o pai ter abdicado do trono, após três décadas de poder

O rei do Butão, Jigme Khesar Namgyel Wangchuck, tomou posse em 2008, depois de o pai ter abdicado do trono, após três décadas de poder

Três anos depois de ser anunciada uma nova constituição que tinha a intenção de democratizar o país, o rei Jigme Singye Wangchuk abdicou do trono em 2008, depois de três décadas, e entregou o poder ao seu filho, o Jigme Khesar Namgyel Wangchuck. No mesmo ano, aconteceram as primeiras eleições livres do Butão. O Partido da Paz e Prosperidade do Butão saiu vencedor, com Jigme Thinley a tornar-se primeiro-ministro. Em 2013, realizaram-se novas eleições, desta vez ganhas pelo partido da oposição, Partido Popular Democrático, liderado por Sangay Ngedup.

Ora, foi precisamente o Governo de Sangay Ngedup que André Silva elogiou do outro lado do mundo. E foi com uma citação atribuída ao ministro dos Negócios Estrangeiros desse Governo, Damcho Dorji, que o deputado do PAN fechou a sua intervenção:

“A felicidade é apenas um estado emocional do ser. É uma ilusão. Há algo absoluto e permanente na natureza da prosperidade? Ela também é uma ilusão. A única maneira de sustentar uma ilusão é quando a mesma é compartilhada por todos”.