Título: “Letra Aberta”
Autor: Herberto Helder
Editora: Porto Editora
Páginas: 70

letra aberta

Letra aberta reúne quarenta e quatro poemas inéditos de Herberto Helder, tratando-se, como vem na contracapa, de “uma escolha realizada pela viúva do poeta para assinalar o 1º aniversário da sua morte”. Este volume não é uma edição crítica, nem faz pretensões de o ser. A falta, porém, de qualquer informação sobre os inéditos agora publicados parece-me uma falha a lamentar, e enquanto leitores dispomos de muito pouco para julgar o conjunto de poemas, desconhecendo se foram escritos num curto período ou durante largos intervalos de tempo, não tendo também forma de saber se o poeta achava estes poemas acabados, incompletos, ou a necessitar de algum trabalho. Letra Aberta contém ainda seis reproduções fac-símile de manuscritos do poeta, onde se pode ver bem a sua caligrafia e a forma como ia corrigindo o que escrevia. A primeira destas reproduções é particularmente relevante, parecendo tratar-se de um plano para uma sequência de poemas que engloba alguns dos inéditos publicados agora neste livro.

De entre os quarenta e quatro poemas, aquele que melhor descreve este livro é o poema da página 55:

Que nunca por estas linhas tivessem um ar acabado,
quisera apenas que uma urgência das coisas
as reclamasse, uma veemência,
uma potência das coisas,
e aí acabasse a sua breve música
mas já que a mim me devastava
que a ti te devastasse
leitor sempre inimigo
como o fogo cria assim a sua própria sombra

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A brevidade dos versos confere ao poema um tom intimista, que nos aproxima enquanto leitores, de forma a compreendermos os termos através dos quais o poeta admite o seu fracasso. Esse fracasso consiste na incapacidade de produzir os efeitos que o poeta gostaria de realizar. É precisamente devido a esta incapacidade que Herberto recorre à descrição dos efeitos desejados, deixando ao leitor entrever o que seria caso a jornada do poeta tivesse encontrado um destino mais amigável. O intimismo deste poema modula assim uma admissão de derrota perante determinadas convicções sobre o que deveria ser a poesia, e, especialmente, a poesia de Herberto Helder. Dado a brevidade e a expressão directa do poema, assumimos a sua confissão como sincera, e não desconfiamos do poema que se encontra à nossa frente.

O problema que estes breves versos comentam, o ar pouco acabado dos versos de Herberto, parece-me descrever adequadamente Letra Aberta. Sendo verdade que de um livro de inéditos nem sempre se pode esperar uma unidade estável e acabada, isto é, um livro completo, é no entanto notória a sensação de incompletude que percorre a maioria dos poemas deste volume. Esta incompletude, todavia, não tanto se prende ao aspecto inacabado dos poemas, visto que a maioria destes consegue manter uma unidade própria, ou seja, não parecem ser fragmentos para um poema maior ainda por escrever. O aspecto inacabado dos poemas é antes o resultado de determinadas dificuldades estruturais que frequentemente recorrem nos poemas de Letra Aberta. Ao contrário do curto poema que acima citei, cujos versos inspiram confiança na honestidade do poeta, a maioria destes inéditos não é capaz de despertar tal sentimento. Pelo contrário, muitas vezes deixam-nos numa posição de desconfiança, não apenas em relação ao poeta como também em relação aos próprios versos que lemos.

O poema “a noite feita, toda ela, em segredo” (pp. 8-9) começa por descrever uma noite de sono difícil, como muitas conhecemos, criando a expectativa de que os versos pretendem dar conta de uma experiência particular de insónia. No entanto, à medida que a leitura progride, apercebemo-nos de que o poema nada tem a ver com uma noite mal dormida, mas que, em vez disso, se trata de uma tentativa de descrição de si mesmo. Este movimento, que por ser inesperado poderia causar perplexidade e atrair o interesse, acaba por ter o efeito contrário, levando até o poeta a admitir a sua incapacidade de controlar o objecto que pretende criar:

e que nada está onde é suposto
e o lenço é ar apenas na mão do mágico
e nada se encontra onde agora se encontra
nem a cabeça
nem a caneta
nem a palavra certa para ser escrita (p. 8)

Herberto, em Letra Aberta, parece por vezes um mágico sem nada nas mãos, sem nenhum truque na manga que nos possa surpreender ou deixar verdadeiramente perplexos. “E o lenço é ar apenas na mão do mágico” é a descrição que Herberto faz das palavras que compõem os seus poemas, estando ‘lenço’ por ‘palavra’ e ‘ar’ por ‘sentido’. Existe algo de suspeito nesta descrição, visto que o poeta, ao insistir na derrota das suas palavras, continua no entanto a escrevê-las. “A noite feita, toda ela, em segredo” deixa-nos com a sensação de que nos seus versos há apenas ar, tal como na mão do mágico, e as palavras que o compõem parecem esvaziar-se de qualquer sentido, tornando-se meros barulhos semelhantes a uma resmunguice, a um bradar aos céus que não sentimos muita curiosidade em escutar. É este esvaziamento, creio, que leva o poema a terminar com a descrição de um passado hipotético e mágico, onde o poeta enquanto criança

escrevia alto numa espécie de caderno
sem páginas de um lado e de outro
e sem palavra nenhuma
sobretudo (p. 9)

Considerando que este final pretende dar conta de um estado de coisas diferente da incapacidade que caracteriza o início do poema, não é de espantar que o ideal de poesia proposto pelo poeta não seja afinal nada que se pareça com poesia. A desconfiança que os versos de Herberto provocam resulta da constante deflação do poema escrito em prol de um outro, sendo esse outro poema descrito de um modo vago. Tendo em conta que todo o poema consiste nessa descrição, deparamo-nos com versos que são como um novelo, um novelo que desenrolado não tem nada para mostrar dentro de si.

“Escrevi umas poucas linhas como estela e como exemplo” (pp. 40-41) é um poema que provoca um efeito semelhante. Começando com a descrição de alguns versos falhados, o poeta dá de seguida expressão às suas aspirações maiores, a um desejo de criação genuína que fosse equiparável à realidade bruta da matéria:

mas soube que não tinha criado os elementos do mundo,
nem nada que ligar a nada que ligasse,
e o poema ruiu de alto a baixo,
sem base ou centro ou cume (p. 40)

Enquanto por um lado se poderia designar de infantil a ambição de ter “criado os elementos do mundo”, tal como a frustração que se segue à apreensão de que tal não é possível, há que ter em conta que o desejo de um poeta é sempre um desejo profundo por criar um objecto genuíno e original. O problema deste poema, então, não se deve à descrição hiperbólica que o poeta faz do seu ofício, mas, tal como no poema que comentei anteriormente, deve-se ao facto de o poeta insistir em descrever os poemas que não escreve. Por outras palavras, este é um poema que tenta descrever o poema que não consegue ser. Particularmente infeliz parece-me ser a forma como Herberto termina “escrevi umas poucas linhas como estela e como exemplo”, pois após confessar o seu fracasso, tenta desculpar-se dele, imputando-o a uma falha na constituição do mundo:

e falei, e falhei (mas não foi por causa disso)
– foi por causa do nada do mundo
foi apenas por nada

Apesar da minha convicção de que o problema da incompletude, que resulta de um movimento em que o poema se debruça sobre si mesmo, é algo prevalecente ao longo de Letra Aberta, parece-me necessário chamar a atenção para o facto de nem todos os inéditos reunidos sofrerem deste problema. Herberto Helder está em melhor forma quando pensou no poema que queria escrever, e escreveu-o, do que quando fala sobre o poema que está a escrever ou sobre os poemas que nunca escreveu. Um exemplo disso é “se eu tivesse dois dentes de ouro” (pp. 45-47) e “para que sirvo eu logo marcado pela manhã?” (pp. 50-51). Ambos são poemas caracterizados por uma expressão directa e concisa, não virada sobre si mesma, como também são pautados por uma imagética rica e estranha. O poema que encerra este volume, “de um certo ponto de vista” (pp 59-60), que começa com uma auto-descrição do poeta, afirmando que “estou melhor agora / com 84 anos” (p. 59), poderia fazer parte desta lista, não fosse a meio abandonar o tom naturalista e directo com que começa para adoptar um outro, que parece desajeitado e talvez até um pouco juvenil:

– mas o papa de agora, digo eu, até sabe judo e karaté e luta livre

olha directo as coisas, conhece
os poemas que se fazem a si mesmos,
nem que seja à custa de napalm e bombas atómicas portáteis assassinas
este papa, se eles não têm cuidado, vai salvar a leitura da poesia.

A ironia presente nestes versos não nos deve levar a pensar que “salvar a leitura da poesia” fosse algo que Herberto achasse de menor importância. Pelo contrário, a ironia confere tal força à ideia que esta parece ser absolutamente necessária. Mas a leitura da poesia, se é que se trata de algo que precisa ser salvo, apenas o pode ser pelos poemas que se escrevem.