O fado não tem de ser sempre melancólico e Gisela João e Raquel Tavares provaram-no mais uma vez na segunda e última noite da segunda edição do Caixa Ribeira, que terminou já na madrugada deste domingo, no Porto. E ser menos festivo e de tempos distintos também não é mau sinal, nunca foi: Simone de Oliveira (mesmo tendo andado por caminhos algo distantes do fado) e Aldina Duarte deram voz a outros dois grandes concertos. A Ribeira voltou a encher-se de gente atrás do fado, que andou mais dispersa que na noite anterior mas que agradeceu a boa confusão.

Surpresas e certezas

Gisela, a de Barcelos e que viveu durante alguns anos do Porto, fez questão de frisar tudo isto durante o seu espetáculo, que foi de acesso livre, apesar do espaço exíguo. Gisela encanta e seduz como mais ninguém por estes dias, ao mesmo tempo que oferece um concerto com direito a “Malhão”, “Vira” e “Senhor Extraterrestre”, escrita por Carlos Paião para Amália Rodrigues. É a canção que Gisela João usa como exemplo, quando fora do país lhe dizem que o fado é pesado: “Em Portugal não somos tristes, somos um povo muito intenso”, defende. “Vieste do fim do mundo” foi um dos instantes mais introspetivos e houve tempo para homenagear a portuense Beatriz da Conceição, com “Voltaste”. Não seria a única a fazê-lo.

A aposta no concerto surpresa de Gisela João foi vencedora, só podia ser; assim como a escolha de Raquel Tavares como cabeça de cartaz do palco principal. Entrou em palco por volta das 0h40, quando já deveria estar a sair. Perdeu algum público mas não lhe fugiu nada em entusiasmo e entrega: entrou no palco, pegou na guitarra portuguesa e esbanjou elegância e atitude. Foi um dos muitos nomes que lançou charme ao Porto, sempre genuína: disse que o seu novo disco, “Raquel” (que teve ali a segunda apresentação), devia muito à cidade, graças às letras de Miguel Araújo e às participações de Rui Veloso e do maestro Rui Massena. E, lá está, homenageou a sua “maior referência no fado”, Beatriz da Conceição, cujo xaile pôs aos ombros. Cantou “Regras da Sensatez” (de Veloso e Carlos Tê), recriou uma casa de fados – com os dois guitarristas a ladearem-na – através de “O Ardinita” (“Quem tem uma mãe tem tudo…”) e de “Um Adeus que me esqueceu”, terminando com a orelhuda “Meu Amor de Longe”. Faltou-lhe a saída em ombros para não lhe faltar nada.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Contem-nos histórias

Quase em simultâneo, no Palácio da Bolsa e no Hard Club, cantaram Aldina Duarte e Simone de Oliveira. Restou ao público dividir-se para não perder pelo menos parte da atuação de cada uma. Ambas muito diferentes e, ainda assim, com pontos em comum. Levar tanto sentimento à voz e medir a força de cada palavra como vimos e ouvimos nos dois momentos é coisa rara: Aldina – a primeira fadista a homenagear Beatriz da Conceição – fez uma grande interpretação de “Antes de quê?”, sentada, no belíssimo Salão Árabe; já Simone encheu o Hard Club e tomou conta da noite com clássicos como “No teu Poema”. Acompanhada por saxofone, piano, acordeão e guitarra acústica, esteve por vezes bastante longe do fado, mas ninguém se terá importado muito com isso.

Simone de Oliveira cantou, desfiou histórias e homenageou Nicolau Breyner. Entre versos lembrou o momento em que contracenavam em “Como vencer na vida sem fazer força” e o ator tê-la-á deixado pendurada numa deixa. Indignada, Simone confrontou-o mais tarde, apenas para descobrir que em vez de dizer “Porque não me trouxe comida para jantar hoje” tinha dito “Porque não me come hoje”. “Mal por mal, decidi ficar calado”, retorquiu então Breyner. Gargalhada geral no Hard Club.

Outras figuras

Na segunda noite de Caixa Ribeira foi maior o entra-e-sai nos concertos – dois ou três fados ouvidos e rapidamente se procuravam outros palcos. Foi no meio do corrupio que encontrámos Ana Sofia Varela nas escadas da Igreja de S. Francisco, com luz natural, fazer a festa com “Havemos de ir a Viana” e “São João Bonito”. Helder Moutinho, com a pose, o canto e a atitude do mestre que é, aproveitou para apresentar temas do novo álbum, “Manual do Coração”. A voz de Florência evocou “Ai Mouraria”, de Amália Rodrigues, e partilhou o palco com Rodrigo, homem de fado castiço que não esconde (e ainda bem) as cicatrizes de uma longa carreira. E, claro, Jorge Fernando. Foram dele os arranjos mais ricos da noite (fez-se acompanhar de violino, flauta, baixo, guitarra portuguesa e bateria), recuperando “Rumo ao Sul”, mais conhecido na voz de Ana Moura, “Chuva”, popularizada por Mariza, e elogiando André Sousa Machado o “pai da bateria no fado”, agora usual mas que “antes não havia”.