“Mil euros – RECOMPENSA.” O cartaz em letras grandes chama a atenção de quem chega à Cova do Vapor para se refrescar com um mergulho num dia de Verão a meio da semana. Está pendurado no quiosque onde se vendem “anzóis minhoca coreano” e Cai Bem, a bebida típica da primeira praia da Costa da Caparica (feita com ginjinha e limões da Malveira, para os interessados) e também está à porta da Padaria Panicova, famosa pelas bolas-de-Berlim.

O que se lê no cartaz já não cai tão bem:

A mala com as marionetas e materiais artísticos foi roubada dia 6 de junho [segunda-feira] na Cova do Vapor. As marionetas não têm valor comercial mas são tudo para o artista que trabalha com elas”

Ao lado, fotos das sete marionetas desaparecidas e uma outra da mala onde foram vistas pela última vez – que é amarela, mas os cartazes foram feitos à pressa ainda nessa manhã e estão a preto e branco.

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Os cartazes que prometem um agradecimento que vale mil euros (Foto: Clara Silva)

Uma recompensa de mil euros poderia ser suficiente para pôr a Cova do Vapor inteira à procura de uma mala de viagem que dá nas vistas. Não aconteceu – pelo menos por enquanto, quem sabe porque a terra de pescadores já tem a sua própria Avenida dos Milionários, como se lê numa placa. “Isso não foi gente daqui”, garante um homem no quiosque do Cai Bem a segurar uma bebida. Outra vizinha acrescenta que “deve ser gente de outro bairro”. “No outro dia quando saímos do karaoke tinham deitado uma árvore abaixo em cima dos carros.”

Artes de ladroagem

O roubo das marionetas aconteceu na segunda-feira à tarde no parque de estacionamento da praia que está na moda, em parte graças à popularidade do restaurante Albatroz, mesmo na areia, e até tem um hostel desde o ano passado. E na memória recente de quem passa por lá, este foi o “primeiro roubo à luz do dia”.

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A mala roubada

Um roubo que custou “15 anos de trabalho e dedicação” ao marionetista húngaro Bence Sarkadi, de passagem por Portugal com a digressão do seu espetáculo de marionetas de Budapeste, que teve de ser cancelado. “Tinha o meu voo ontem [no dia anterior] e decidimos ir antes à praia antes e estacionámos o carro”, conta. “Quando voltámos estava vazio. Toda a bagagem tinha sido roubada. Documentos, tudo. Hoje nem sequer tinha meias para calçar, tive de comprar.”

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Foto: Clara Silva

Os documentos e as meias não lhe interessam. O que interessa mesmo é a mala de marionetas, que seria “um milagre” aparecer. “São 15 anos de trabalho”, repete o marionetista de 35 anos, com vários prémios em festivais de performance e marionetas em várias partes do mundo, da Roménia à Austrália.

Todas elas são únicas, fui eu que as fiz e sem elas não consigo trabalhar. Estou a meio da época dos festivais. Tenho 27 convites para festivais e agora vou ter de cancelá-los a todos. Para fazer cada marioneta destas outra vez demoraria um ano.”

Bence veio para Portugal para o Imaginarius, Festival Internacional de Teatro de Rua em Santa Maria da Feira, e depois à 21ª edição da Sementes – Mostra Internacional de Artes Para o Pequeno Público, em várias localidades da Margem Sul, de Almada a Sesimbra, e que acabou no domingo, 5 de junho. “A organização tem sido muito prestável [a mala estava num carro que pertencia à organização]. Fomos à Feira da Ladra esta manhã, mas não encontrámos nada.”

Cristiano Ronaldo das marionetas

Mantega, nascido numa cidade perto de Porto Alegre, no Brasil, outro performer de malabarismo e artes circenses que esteve a atuar no festival, também ficou sem a sua mala. “Computador, colunas de som, material do espetáculo, ao todo são perto de 5 mil euros”, estima. “Mas nada que se compare com o que o Ben perdeu. Ele é um dos melhores marionetistas do mundo, com um trabalho muito especial, muito original. Isso na mão de outra pessoa não tem nenhum valor. É como uma bola de futebol para um jogador de futebol. Imagina se desaparecessem todas as bolas de futebol para o Cristiano Ronaldo. Ele é um excelente jogador, mas sem a bola não consegue fazer nada. Que ia ele fazer?

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Bence Sarkadi, o homem das marionetas

Por enquanto, e quando a história e as fotos das marionetas começam a circular nas redes sociais, ainda nenhuma marioneta apareceu, nem nos caixotes do lixo das redondezas. “Se fosse só dinheiro e documentos, eu diria: ‘Acontece’”, suspira Ben. “Agora, seria um milagre se todas fossem encontradas. Uma das marionetas sou eu, outra é o meu pai. É tudo muito pessoal, é a minha vida, as minhas criações. Não imagino o que alguém poderá fazer com elas, mas provavelmente deitá-las no lixo.”

Não é uma brincadeira de crianças e qualquer novidade das marionetas pode ser enviada para o número da produção do festival Sementes: 965 044 016. A recompensa mantém-se: mil euros, até porque para Bence elas valem tudo.

Atualização, a 8 de junho, às 12h05:

Afinal, não foi preciso recompensar ninguém. Quando já se preparava para apanhar um voo de volta para Budapeste com os documentos provisórios da embaixada, Bence recebeu uma boa notícia da polícia: “Esta noite [terça à noite] a polícia encontrou a minha mala numa mata perto do Seixal!”, escreve-nos por mensagem. “As marionetas estão todas lá — umas em melhor estado que outras — mas estão lá todas!”

“Claro que todo o meu equipamento técnico, dinheiro e documentos desapareceram, mas esses são substituíveis. Se tudo correr bem consigo reconstruir as partes partidas e comprar o resto dos gadgets para o espetáculo em poucas semanas.” Afinal ainda há milagres — nem que seja num espetáculo de marionetas.