O dia de ensaio geral já cansa alguns dos artistas da Companhia Nacional de Bailado (CNB). Entre as vozes ofegantes e as caras vermelhas atrás do palco, todos vestem macacões com padrões animalescos e cores garridas. Nos bastidores e no palco, em ambos os espaços vai-se definindo tudo o que se passará a partir de 16 de junho no Teatro Camões. “Carnaval” é um bailado criado pelo coreógrafo Victor Hugo Pontes, a partir da peça “O Carnaval dos Animais” de Camille Saint-Saëns.

Embora não permaneça no ano de 1886, quando foi idealizado pelo compositor francês, esta versão contemporânea continua a “brincar ao faz-de-conta, coisa tão característica da época”, segundo Victor Hugo Pontes. A acompanhar os bailarinos da CNB está a Orquestra Sinfónica Portuguesa, dirigida pelo maestro Cesário Costa. Uma das novidades, quando comparamos esta encenação com a obra original, é a música feita a partir de obras de 12 compositores: desde o próprio Camille Saint-Saëns até ao português Mário Laginha. Em “O Carnaval dos Animais”, os momentos musicais eram 14, cada um deles a representar uma espécie animal.

As mudanças ligeiras não impedem o ambiente carnavalesco, onde a cenografia e o trabalho de iluminação transportam o espetador para uma feira popular: pode ser a roda gigante no teto, semelhante à dos carrosséis mais temidos e coloridos, ou os figurinos dos artistas enaltecidos num cenário maioritariamente negro. O público pode esperar a entrada num mundo de fantasia, onde ninguém é verdadeiramente quem diz ser.

Os bailarinos vão interpretar vários animais num verdadeiro jogo de Carnaval, por isso é que na coreografia imitamos os seus movimentos”, explica Victor Hugo Pontes.

A cada momento mais forte dos instrumentos, seja do violino ou do xilofone, os artistas acompanham com uma dança quase robótica e instintiva. Deslizam pelo palco em grupos, onde o barulho dos passos e dos corpos se funde com a música da orquestra. “O desafio é transmitir que cada uma das composições dos 12 autores tem um mundo próprio: quando é a música dos lagartos, sentir que estamos a ver lagartos, por exemplo”, explica o maestro Cesário Costa.

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Da mesma forma que os 37 bailarinos interpretam diferentes personagens, também os músicos têm a tarefa de tocar estilos diversos, à mercê de cada compositor. “Acaba por ser um Carnaval construído com vários elementos”, acrescenta o maestro. Quanto ao público, o objetivo passa por não haver uma sobreposição de protagonismo entre o que se passa em palco e o que é tocado. Victor Hugo Pontes defende que “Carnaval” é um bailado “abstrato, onde as pessoas vão construir a sua própria narrativa”.

O espetáculo desenrola-se ao longo de uma hora e 25 minutos e é durante este tempo que o público pode reconhecer em cada um dos bailarinos os mais diferentes animais e seres mitológicos. Embalados uns pelos outros e em permanente interação física, surgem grupos de aranhas e até um cavalo formado por dois artistas. A fantasia é feita a partir dos movimentos da dança “num sentido de humor e paródia”, diz o coreógrafo — a mesma opinião que Camille Saint-Saëns esperava transmitir relativamente à música parisiense da altura — ainda que o compositor francês tenha mantido a obra “escondida” do público até à sua morte. Mas também há no palco uma ideia de fim e recomeço, da festa e do seu fim. Tal e qual o Carnaval: “O Carnaval como o conhecemos termina na quarta-feira de cinzas, essa relação com a morte e a Quaresma também é explorada”, esclarece Victor Hugo Pontes, que assegura também que há inspiração vinda de um poema de Adília Lopes:

Uma raposa que tinha brincado com outra
no quintal da casa da mãe
às fábulas de La Fontaine antes de as ter lido
e que depois as leu e disse
as fábulas de La Fontaine tinham razão!
ficou com muita vontade de ir para a floresta
brincar a sério às fábulas de La Fontaine
à entrada da floresta estava uma raposa
a raposa perguntou isto é uma floresta
a sério ou a fingir?
a raposa da entrada da floresta
achou a pergunta tão ingénua
que achou que não valia a pena
estar a explicar à outra
que ali ou se come ou se é comido
e que para quem come como para quem é comido
saber se ali é uma floresta a sério ou a fingir
não é uma questão pertinente
isto aqui é uma casa particular
respondeu a raposa
e bocejou

in Os 5 livros de versos salvaram o tio, 1991.
Dobra – Poesia Reunida 1983-2014

O espetáculo estreia esta quinta-feira, 16 de junho, às 21h no Teatro Camões, em Lisboa. De quinta a sábado às 21h; domingos às 16h; até dia 26. Os bilhetes custam entre cinco e 30 euros.