Morreu este sábado o fotógrafo nova-iorquino Bill Cunningham (1929-2016). Era, até ontem, desde 2009, um monumento vivo de cidade de Nova Iorque, cujas ruas esquadrinhou de bicicleta durante meio século, de casaco azul, fotografando pessoas. Contemporâneo de quase todos os grandes fotógrafos de rua de Nova Iorque, não será porém lembrado pelo mundo da fotografia, mas pelo mundo da moda, que o venerava. Anna Wintour — cujo sentido de estilo acompanhou desde que dela há memória — confessa num documentário (Bill Cunningham New York) que era para Bill que todos se vestiam, sendo uma tragédia passar-lhe indiferente.
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Vê-lo fotografar era uma delícia. Prendia a bicicleta, escolhia uma esquina, pegava na câmara, e deixava-se estar à espera de encontrar a beleza, rodando pescoço e olhos para este par de sapatos, para aquela mala, para certo chapéu. Em vez de um bailado absurdo em busca de si mesmo numa composição, dançava como uma borboleta em torno das mulheres e homens cuja roupa lhe despertasse interesse, fotografando-os sem muitas palavras, despedindo-se com um aceno, um sorriso, um agradecimento reservado. Nunca mostrou o menor interesse por celebridades, mas pela gente comum, ou antes, fotografava uns e outros sem distinção social. Interessava-se por roupa e não pelo estatuto a ela associado. Inventava o estilo nos outros com o olhar. Execrava a hierarquia e ferocidade dos círculos da moda de Nova Iorque, enquanto estes matavam pela sua aprovação. As suas escolhas (que vieram dar origem a uma famosa série de vídeos no NY Times) influenciaram tendências de moda ao longo de décadas. Em 2008, o Ministério da Cultura francês tornou-o Officier de l’ordre des Arts et des Lettres.
A câmara fotográfica era para si uma ferramenta tratada com certo desprendimento. Fotografou com várias câmaras Nikon de 35mm, que foram sendo roubadas e substituídas, e cujos negativos trazia diariamente para edição à redacção do New York Times; teve várias bicicletas baratas, que também foram sendo roubadas e substituídas por novas; usou vários casacos azuis — sempre o mesmo modelo de operário francês, que lhe custava cerca de 3 dólares — os quais ia cosendo e remendando com fita-cola até realmente precisar de os substituir.
A par de um sentido de estilo sofisticado e da veneração unânime por parte do mundo da moda, vestia sempre os mesmos trapos mortiços e não ligava à sua própria figura. Levezinho, ossudo, escanzelado, comeu fast food a vida inteira e morreu aos 87 anos. Homossexual (tema em que não gostava de tocar), era também um devoto católico de ascendência irlandesa e escolheu para si mesmo a castidade. Até ser despejado, morou numa autêntica despensa do Carnegie Hall, onde tinha uma cama estreita rodeada de arquivos, negativos, rolos, revistas, meia dúzia de trapos e a bicicleta do momento. A sua independência e a sua privacidade eram um mistério para todos. O seu lema de vida era não aceitar dinheiro de ninguém, nem sequer um acepipe em qualquer festa de moda: nada. “Se não aceitares dinheiro, não podem mandar em ti.” Viveu monasticamente e sobreviveu a — não, triunfou sobre — Nova Iorque. “Aquele que procura a beleza, encontrá-la-á”, afirmou uma vez. Este poderia ser o seu epitáfio. Teve a coragem de ser exactamente quem queria ser. Os obituários lembrá-lo-ão como um dos mais influentes fotógrafos de moda do século XX, e um visionário. Gostaria de lembrá-lo antes como um homem livre, o oposto de um moralista, e um exemplo de vida.