A música brasileira está cheia de figuras excêntricas mas poucas são tão extraordinárias como Elza Soares. Aos 79 anos (há fontes que garantem que são 86), mais de 60 passados a cantar, Elza Soares vive um momento criativo fervilhante. Mulher do Fim do Mundo, álbum lançado no final de 2015, é o primeiro álbum de inéditos numa carreira com mais de 30 discos, mistura jazz, noise, rock, rap, samba, tudo o que espetro sónico de alguns dos melhores músicos do underground de São Paulo (membros dos influentes Metá Metá e Passo Torto, incluídos) conseguiu processar, e coloca-nos perante o apocalipse.
Mulher do Fim do Mundo é um disco de “samba sujo”, provocador e perturbante. Fala, claro, do fim do mundo, de drogas, morte, transexuais, violência doméstica, dores pessoais e males coletivos. Não é exatamente o que se esperaria de uma septuagenária normal mas Elza Soares nunca foi convencional. É ela própria que afirma que canta “para as mulheres, para os negros, para os gays”. A sua voz e a sua atitude musical escapam à formatação e, mesmo tendo sido, em tempos, considerada rainha do samba, nunca teve medo de desafiar os cânones do género.
A história de vida Elza Soares é, no mínimo, trágica. Inspiradora também. Nasceu numa favela, casou aos 12 anos, forçada pelo pai, foi mãe ainda criança. Ao longo da vida já perdeu 5 dos 6 filhos, sobreviveu à fome, ao racismo, aos insultos e incompreensão, à morte de vários maridos, entre eles o futebolista Garrincha, mas, apesar dos terríveis dramas pessoais, a música fez dela uma sobrevivente e cantou sempre com uma entrega enfeitiçante. É muitas vezes comparada a Ella Fiztgerald e Bessie Smith, já lhe chamaram um misto de Tina Turner e Célia Cruz mas nenhuma comparação lhe faz justiça, até porque ninguém canta como ela.
A sua carreira teve altos e baixos. Desde o momento, nos anos 50 do século passado, em que foi descoberta na Rádio Tupi, num programa de talentos de Ary Barroso (no qual, diz a lenda, participou para pagar os medicamentos do filho doente), ao tempo atual, em que está prestes a atuar na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos, aconteceu muita coisa, sobretudo uma consistente atividade musical (embora nem sempre compreendida no seu país Natal) que levou a BBC a considerá-la a cantora do milénio, em 2000.
Na verdade, os grandes momentos musicais de Elza Soares são já deste século. Do Cóccix Até Ao Pescoço, disco de 2000 que teve uma nomeação para os Grammys, mostrou-a mais arrojada do que nunca até então, a reinventar canções de gente como Chico Buarque, Jorge Ben, Carlinhos Brown, Arnaldo Antunes, ou Caetano Veloso e Gilberto Gil, cujo fabuloso “Haiti” renasce aqui envolto num voodoo poderoso.
No disco seguinte, Vivo Feliz (2003), continuou a experimentar com samba e música eletrónica, jazz, hip hop, soul e funk, aberta às referências das novas gerações de músicos e produtores do Brasil, mas é no novo Mulher do Fim do Mundo que ganha um fulgor inusitado. Os músicos que acompanham Elza, experientes na procura de fusões improváveis e avessos a facilitismos, confessaram que, por muito que se esforçassem em ser “malucos”, nunca viram Elza Soares vacilar, ela aceitou sempre os desafios e levou-os ainda mais longe do que originalmente imaginado. Mulher do Fim do Mundo teve uma receção assombrosa, tanto no Brasil, onde foi considerado um dos discos do ano, como fora, mas está longe de ser um disco fácil, ou não fosse um retrato do Brasil e do mundo no século XXI.
Elza Soares, a verdadeira mulher do fim do Mundo, é uma das presenças confirmadas na abertura dos Jogos Olímpicos 2016, um sinal claro do reconhecimento transversal desta cantora destemida que um dia disse ser do Planeta Fome.
Isilda Sanches é jornalista e animadora de rádio na Antena 3