Organização: Carla Baptista
Título: América, The Beautiful – Relatos de escritores portugueses
Editora: Tinta-da-China
Páginas: 365
Conceda-se desde já algo que a muitos pode causar espanto: há pessoas que não possuem qualquer interesse pelos Estados Unidos da América. “Interesse”, aqui, não está pela óbvia e determinante posição geopolítica que aquele país assumiu ao longo do último século; está antes por aquilo a que Natália Correia chama “sentimento abstracto: o da fascinação” (p. 174) no relato que fez da sua estadia nos Estados Unidos em 1949. Mesmo para esses que não sentem qualquer apelo particular por aquele território além-Atlântico, o livro América, The Beautiful não fica desinvestido de importância e, até, de pertinência.
Carla Baptista esclarece, na apresentação que faz dos relatos de escritores portugueses que coligiu para este volume, que o seu critério de selecção se pautou pelos testemunhos de experiências na primeira pessoa – todos os textos resultam de visitas mais ou menos prolongadas aos Estados Unidos, abrangendo um período que vai desde 1866 a 1972. Não escapamos aos lugares-comuns (que só o são para nós por termos sobre estes relatos décadas de avanço que tornaram corriqueiro o que era, à altura, novidade), mas o que surpreende é a sensação de curiosidade e de descoberta, de se estar perante um país diferente que precisa de ser explicado a pessoas que estão habituadas a costumes, não só portugueses, mas europeus. (Convenhamos que, ainda hoje, aquilo que acontece naquele país origina tal estupefacção que ansiamos por explicações.)
O conjunto de escritores seleccionados pode dividir-se, grosseiramente, entre escritores de ficção (os nomes mais sonantes) e jornalistas (nomes menos conhecidos do público mas cuja relevância é explicada em notas biográficas no final do livro). Há uma preocupação que é mais comum ao primeiro grupo: gostou-se ou não se gostou da América? Eça de Queirós, não muito: preferiu o Canadá; apelida Nova Iorque de estúpida e justifica-o comparando-a a outras cidades europeias: “Paris fez a Revolução, Londres deu Shakespeare, Viena deu Mozart, Berlim deu Kant, Lisboa… deu-nos a nós – que diabo! Mas esta estúpida Nova Iorque o que tem dado?” (p. 35). No entanto, tal como noutros testemunhos, o que prevalece é uma ambiguidade dilacerante e intransponível: “é uma cidade que em parte amo e em parte detesto. Amo-a porque… porque sim – e detesto-a, porque deve ser detestada” (p. 33). Não é apenas à cidade de Nova Iorque que esta prerrogativa deve ser aplicada, mas a todo o país, tal como na pergunta que Eça coloca, numa interrogação partilhada por muitos ainda hoje:
Isto é decididamente uma grande força, uma vida enorme, superabundante. Mas será vital, fecundo, cheio de futuro?” (p. 41).
Mas o que é “isto”? Carla Baptista diz também que nos textos que escolheu procurou aqueles que “evitavam a pretensão de se apresentarem como a visão dos Estados Unidos” (p. 15). No entanto, as impressões de cada escritor têm pontos em comum e, embora particulares e dispersas, parecem almejar sempre a dar conta do que aquele país é. Friedrich Wohlwill, médico alemão que veio para Portugal fugindo ao regime nazi e que, mais tarde, decidiu juntar-se aos filhos nos Estados Unidos, escreve aos seus amigos portugueses fazendo uma advertência: “Se, portanto, nas seguintes linhas disser ‘é’ ou ‘são’, peço-lhes ajuntar sempre: ‘segundo as minhas experiências’ ou ‘segundo as minhas impressões'” (p. 118). Se Fidelino de Figueiredo decide ordenar a sua experiência americana segundo três problemas que considera serem os essenciais, a fome, o amor e a morte, dando conta do que viu ser a atitude americana perante estas três questões, o já mencionado médico Wohlwill cinge-se quase totalmente à sua prática médica, organizando o seu testemunho segundo rubricas: “Medicina em Geral”, “Saúde Pública”, “Clínica”, “Cirurgia”, “Hospitais”, “Ensino”, “Ética Profissional” e “Psiquiatria”, não resistindo a fazer observações sobre temas tão gerais quanto a democracia americana, a literatura, a música, a paisagem e o clima.
Dos relatos certos
Neste alternar entre o particular e o geral, a imagem do país vai-se tornando sólida e reconhecível, dir-se-ia até que quanto mais particular, melhor, porque é destas impressões singulares que se extraem as explicações às questões maiores: António Ferro, no expresso Houston–St. Louis, encontra o filho do milionário Vanderbilt que, para surpresa do jornalista português, é ele próprio jornalista que não abdicou da sua vocação em favor da fortuna. “Quem não trabalha não serve para nada, ocupa espaço inutilmente” (p. 68), diz Cornelius Vanderbilt, assumindo também que está separado da mulher, de quem só não é divorciado por falta de consentimento dela. Ferro indaga se a profissão de repórter é, na América, “profissão rendosa”; descobre que se faz em média mil dólares por artigo: “Mil dólares! Vinte contos de réis, vinte contos da carochinha… Cinco artigos por mês, cem contos de réis! Desfaleço… Cresce-me água no aparo: falta-me a tinta… Vou dormir” (p. 69). Temos, neste relato, intimações dos afamados “mérito próprio” e “individualismo” imputados ao carácter dos americanos e percebemos como, em 1927 (data deste testemunho), o divórcio era já procedimento comum nos Estados Unidos.
Joaquim Paço D’Arcos fala-nos de temas tão particulares quanto programas de televisão, do seu encontro com o presidente Harry Truman, do sistema de lobbies ou da sua visita à redacção do Washington Post, num tom pessoal, quase íntimo (mas não naquela intimidade simulada de certos escritores de ficção) e, simultaneamente, desapegado e esclarecido, onde o humor é parte do estilo. Da visita que fez ao Pentágono, Paço D’Arcos trouxe, para além da “alegria da paz” (ao invés da ideia de “iminência da guerra”), uma antologia de novelistas americanos que adquiriu numa das muitas lojas daquele edifício. Perante o “Come back again” da lojista no final da venda, o escritor reflecte:
Se não tivesse já escutado dezenas de vezes a frase sacramental, de boa hospitalidade, certamente que ela teria lançado a confusão no meu espírito: – Para que voltaria eu, o paisano mais pacífico do mundo, à sede da mais poderosa organização bélica do orbe? Talvez para comprar uma antologia de poetas… (p. 180)
Os relatos dos jornalistas (ou dos que visitaram os Estados Unidos com o propósito de sobre ele fazerem reportagem) são, sem dúvida, os mais interessantes desta colectânea, pela prosa sem afectação, pelas situações descritas, por realmente não tentarem dar uma visão geral do país que é o seu assunto. Se a prosa do jornalista Manuel Rodrigues é a mais despida de maneirismos, abordando os grandes temas da política americana (como o do funcionamento do sistema democrático e o problema do racismo), o seu relato é um dos mais bem conseguidos. Lamenta-se o facto de Carla Baptista não ter conseguido reunir os dados necessários para uma nota biográfica de Manuel Rodrigues, visto que, para além da qualidade dos seus textos, foi ele o organizador do volume Os Estados Unidos Vistos por Jornalistas Portugueses (1955), de onde foram retirados a maior parte dos relatos de jornalistas que constam de América, The Beautiful.
Nós, os fascinados
As maiores virtudes deste livro são, em primeiro lugar, dar a conhecer alguns escritores pouco conhecidos ou esquecidos e, em segundo, servir de divulgação das obras de onde os relatos aqui reunidos foram retirados. Tratando-se de uma colectânea, compreendem-se as restrições em publicar textos na íntegra, especialmente os de maior extensão; porém, a edição de alguns desses textos torna-se por vezes confusa: por exemplo, nos capítulos de Antero de Figueiredo, Jorge Segurado e Natália Correia, as separações entre cada uma das secções do texto deixam dúvidas sobre a completude ou a ordenação de cada excerto.
Ressalvando-se a qualidade incontestável da maior parte dos relatos, a originalidade da ideia de dar a conhecer o que portugueses escreveram sobre os Estados Unidos e, mais ainda, ter-se cingido a cronologia até aos anos setenta, evitando testemunhos mais recentes e, por isso, redundantes, alguém que sofre de fascínio pela América não pode deixar de se sentir como Simone de Beauvoir, que Carla Baptista sente necessidade de citar na sua apresentação: “não se passou um dia em que não me sentisse deslumbrada; nem um dia em que não me sentisse decepcionada” (p. 20). A decepção, neste caso, é a de nós, os fascinados, nunca encontrarmos a nossa América em lado nenhum, mesmo havendo aqui passagens em que a entrevemos, momentos em que a vislumbramos (que serão diferentes e particulares para cada um – a América, ao contrário do que se pensa, é maioritariamente um assunto privado); alimentamos a esperança de que uma visita a solo americano seja capaz de resolver o problema, mas essa esperança convive a par da suspeita terrível, para a qual este livro contribui, de que nem mesmo assim encontraremos a América que procuramos.