O Banco Central Europeu (BCE) publicou em agosto uma adenda ao guia de supervisão bancária que permite, em situações excecionais, combinar as funções de presidente executivo e não executivo (chairman) no mesmo titular. Esta autorização deve ser “concedida apenas em casos excecionais e somente se tiverem sido adotadas medidas corretivas para garantir que o facto de estarem combinadas (as duas funções) não compromete as responsabilidades e as obrigações de prestação de contas de ambas as funções”, lê-se na versão portuguesa do documento a que o Observador teve acesso.
Terá sido à luz deste quadro excecional que o BCE autorizou António Domingues a acumular funções de presidente executivo e chairman na Caixa Geral de Depósitos durante seis meses, prazo que que também está previsto neste guia. O facto de esta possibilidade ter ficado prevista nas guidelines do BCE enquanto decorriam as discussões sobre o novo conselho de administração e governo da Caixa Geral de Depósitos — ainda que a adenda de outros temas — está a ser vista como mais do que uma coincidência. Até porque se sabia que uma das principais objeções do BCE à proposta para o banco do Estado era precisamente a junção das duas funções na mesma pessoa, ao arrepio do que está previsto na diretiva bancária que enquadra o tema e nas guidelines definidas pela EBA (o regulador europeu para banca) sobre a matéria e que datam de 2012.
Sobre esta tema, a adenda do BCE ao guia sobre faculdades e opções previstas no direito da união começa por dizer:
“O BCE considera que deve haver uma separação clara das funções executivas e não executivas nas instituições de crédito e que a separação entre as funções do presidente do órgão do conselho de administração e de administrador executivo deve ser a norma.”
O órgão liderado por Mario Draghi sustenta que as responsabilidades e a obrigação de prestação de contas do presidente do conselho de administração na sua função fiscalizadora e do administrador executivo “divergem, refletindo as finalidades distintas das funções de fiscalização e administração de cada um deles”.
Argumenta ainda com as orientações do comité de Basileia que, em nome do equilíbrio de poderes, dizem que o “presidente do órgão de administração deve ser um membro independente ou não executivo do mesmo”. No entanto, invoca as mesmas guidelines para recordar que nas jurisdições que permitem ao presidente assumir funções executivas — como é o caso do regime geral das instituições de crédito aplicável em Portugal — a instituição deve adotar medidas para atenuar “eventuais efeitos negativos no equilíbrio de poderes”.
É nesse sentido que conclui que a “autorização para combinar as duas funções deve, por conseguinte, ser concedida apenas em casos excecionais e somente se tiverem sido adotadas medidas corretivas para garantir que o facto de estarem combinadas não compromete as responsabilidades e as obrigações de prestação de contas”. O BCE acrescenta que irá avaliar os pedidos de combinação de funções, como o que recebeu para a Caixa, ao abrigo das linhas orientadoras do BCE e de Basileia e avisa que “uma tal autorização deveria ser concedida unicamente para o período em que persistam as circunstâncias justificativas”, apresentadas pela instituição.
Ao fim de seis meses da autorização para combinar os funções, a instituição (neste caso a Caixa) deve avaliar se as circunstâncias justificativas subsistem e informar o BCE que “pode revogar a autorização, se determinar que o resultado da avaliação sobre a persistência das circunstâncias excecionais não é satisfatório”.
Sobre esse tema, o comunicado divulgado pelo Ministério das Finanças sobre a decisão do BCE em relação à governação e equipa de gestão da Caixa, diz que “a separação das funções de presidente do conselho de administração e do presidente da comissão executiva foi considerada necessária no prazo de seis meses. Período esse que o governo utilizará para analisar com o Banco de Portugal e com o BCE esta questão”.
Ora, o Banco Central Europeu avisa desde logo que o facto da legislação nacional permitir a acumulação não será argumento suficiente. Terá que ser avaliado o impacto sobre o equilíbrio de poderes e diversidade das atividades, as particularidades da estrutura de governação e dos estatutos do banco e de que forma estes instrumentos permitem ou impedem a separação entre a administração e fiscalização. A existência e importância de atividades fora de Portugal, o número e a natureza dos acionista, são outros pontos que entram na avaliação.
Um dos argumentos usados por Portugal para justificar a junção das duas funções é precisamente a natureza pública da Caixa, ou mais precisamente, o facto de existir apenas um acionista, o Estado. O modelo de separação entre chairman e presidente executivo está mais associada a empresas cotadas em bolsa ou com vários acionistas em que um dos papéis do presidente não executivo é o de fazer de ponte com os diversos detentores de participações, o que não será necessário no caso da Caixa.
Outra razão terá levado o governo a voltar a este modelo de governo — a administração ainda em funções da Caixa tem um presidente executivo (José de Matos) e um chairman (Álvaro Nascimento), foi a existência no passado de conflitos entre estas duas figuras. O caso mais conhecido é do BCP — em 2007 rebentou uma guerra aberta entre o presidente do conselho geral e do presidente executivo — mas uma dos primeiros casos desse tipo de conflito foi na Caixa em 2004, entre o presidente da comissão executiva, Mira Amaral, e o presidente do conselho de administração, António de Sousa.
Conselho de administração alargado era resposta, mas não passou ainda
Cabe à entidade supervisionada, ou seja, à própria Caixa demonstrar que foram adotadas medidas “eficazes” e “compatíveis com a legislação nacional)” para mitigar eventuais efeitos negativos. E que medidas serão essas? O alargamento do conselho de administração com um maior número de administradores não executivos, com funções de fiscalização, seria uma das respostas. Mas no caso da Caixa, esta solução de conselho alargado — 19 administradores com 12 não executivos — foi travada pelas restrições da lei portuguesa à acumulação de cargos por parte de administradores não executivos que vinham do setor não financeiro.
Dos 12 não executivos inicialmente escolhidos, oito não puderam ser nomeados porque tinham cargos em outras sociedades fora do setor financeiro e do universo da Caixa, o que reduziu o nº de não executivos, pelo menos nesta fase, a quatro nomes, para além dos também quatro propostos para o conselho fiscal, que neste modelo é um órgão autónomo do conselho de administração.
Este é contudo um obstáculo que o governo pretende ultrapassar com a alteração do regime geral das instituições de crédito para uma versão menos restritiva, em linha com a diretiva europeia que permite a acumulação de cargos não executivos na banca com caros não executivos fora do setor financeiro.
Outra via para reforçar o controlo sobre o super-presidente da Caixa (porque executivo e não executivo) será reforçar os poderes de um vice-presidente, conferindo-lhe, por exemplo, a possibilidade de convocar o conselho.