Vai colecionando anos de carreira e nessa conta já vai nos 50. Brasileiro nascido no Rio de Janeiro, começou pela bossa nova, descobriu as coisa da pop e a América, deixou o país porque “não dava mais” pelo caminho fez amigos e colaboradores que lhe garantiram a carreira — mesmo que durante muito tempo tenha trabalhado na sombra da voz de outros. No início do novo século foi redescoberto por editoras com gosto por arquivos, DJs em busca de pérolas menos populares e até produtores que precisam sempre de novas fontes para loops e samples. Este fim-de-semana, Marcos Valle é um dos nomes em cartaz no Lisb-On, festival que vai de sexta a domingo no Parque Eduardo VII, em Lisboa. A música — feita de coolness, com pop, dança e electrónicas pelo meio — começa a seguir ao almoço e não chega às hora da madrugada. Tudo perfeito para Marcos Valle, que, quando atende a nossa chamada, está a curtir o feriado.
Olá Marcos. Hoje é feriado aí no Brasil, certo?
Sim, é feriado porque é a abertura dos Jogos Paralímpicos. E é 7 de setembro, a independência. Está um dia bonito, um feriado, está gostoso.
E o Brasil, como está?
Estamos passando por uma alteração da situação política, com a mudança de presidência. Vai ser uma época confusa até que as coisas comecem a se tornar mais calmas e que o povo passe a acreditar realmente que economicamente isso será bom. Agora, ao lado disso estamos vivendo momentos muito felizes, principalmente porque o Brasil, bem, o Rio de Janeiro, mas também o Brasil todo, está em festa desde os Jogos Olímpicos. Foi muito bonito, a cidade ficou linda, e não só durante, porque a cidade cresceu muito. E começa a chegar agora o final do ano, o Natal, essas coisas todas, e estamos vivendo um momento de interesse em termos de alegria no Brasil. O lado político… bom, vamos aguardar para ver como fica. Vou fazendo a minha música
Faz música todos os dias?
Nem sempre. Depende. Muitas vezes estou em tournée, não dá para ficar fazendo música todo o dia. Quando estou tranquilo, em casa, tem épocas que faço música quase todo o dia, sento no piano, pego o violão, vou dar uma caminhada na beira da praia, me vem uma melodia assim na mente… tem umas outras épocas que não. Não é quotidiano, mas é bem provável que eu toque todo o dia meu piano ou violão.
Às vezes acaba a tocar com a Paula e o Jaques Morelenbaum no fim-de-semana, por exemplo. Acabou de fazer uma série de concertos com eles, como foi?
Foi muito interessante, fomos tocar num bairro do subúrbio do Rio, Madureira, que não tem uma tradição de ter um público que goste de bossa nova, desse tipo de ritmos. Acontece que foi lindo, foi uma ideia de levar a bossa à Madureira, fui o convidado para encerrar o projeto, foi uma surpresa geral porque estava completamente lotado, com lugares extra, gente em pé, um público cantado tudo, participando.
Concertos que serviram sobretudo para olhar para trás, para recordar canções de outros tempos…
Um pouco assim… bom, talvez nem tanto. Tocámos o “Samba de Verão”, de 1965, mas toquei a “Estrelar”, dos anos 80.
Mas os anos 80 já foram há 30 anos.
É verdade, mas isso também faz olhar em frente. Gosto muito das coisas que já foram, mas gosto muito de saber o que vou fazer no futuro. Valorizo muito o que já fiz, mas a minha energia, meu combustível, vem assim. Estou indo para Lisboa, já fico muito feliz com isso, que é um novo lugar, um novo público. Depois vou para Moscovo. Depois vou para o Japão. Aí tem novos projetos, novas parcerias, já fico pensando num novo CD para o ano que vem…
Por falar em discos, o que aconteceu nas décadas de 80 e 90?
O seguinte: quando chegou 1975, saí do Brasil, fui morar nos Estados Unidos. Uns dez anos depois do “Samba de Verão”. Naquela época havia uma ditadura no Brasil. Havia muita censura nas artes, comecei a ficar triste com isso e um pouco deprimido com essa história. Resolvi ausentar-me do Brasil para respirar um pouco, mas não sabia que ia ficar tanto tempo fora. Acontece que quando cheguei aos EUA, as coisas começaram a acontecer muito bem para mim. A Sarah Vaughan começou a cantar temas meus.
E a cantar consigo versões dos Beatles…
Isso mesmo. Ao mesmo tempo, gente como Leon Ware ou os Chicago também quiseram colaborar comigo. Fiquei por lá. Estava atuando mais como compositor, não gravei entre 1975 e 1980. Quando volto em 1981, aí sim, começo a gravar outra vez. Gravo dois discos, um deles é o Vontade de Rever Você, que tem o “Estrelar” e depois saio da Som Livre. Gravo um outro, Tempo da Gente, numa outra gravadora, e naquele momento a música no Brasil dá uma mudada, o ambiente musical altera-se. Em 85, 86, a música se torna diferente, muito comercial, o que toca na rádio começa a ser… as coisas não tinham uma intenção de qualidade, tinham intenção de vender. Continuei como compositor para outros cantores e esperando um momento de voltar a gravar. Só aconteceu mesmo na década de 1990. Veio aquele interesse lá de fora, a redescoberta da minha música na Europa, os DJs na Inglaterra. Bom, tudo começou a mudar.
Esses DJs prestavam atenção a quê, a que fase do seu percurso?
A minha primeira música que atrai esses DJs é o “Os Grilos”, que estava no disco Samba 68. Esse tema começou a tocar nas pistas de dança e o público começou a perguntar de quem era a canção. E depois isso foi crescendo, a criatividade foi aumentando.
E agora é samplado por gente como Jay Z, Kanye West ou Joey Bada$$.
Foram buscar músicas minhas que gravei nos anos 1970. O Jay Z pegou no “Ele e Ela” e o Kanye West e o Pusha T () pegaram em “Bodas de Sangue”. Usaram a minha gravação e fizeram o trabalho em cima. Uma parte do público deles de repente vai ficar interessada em saber como era o original daquele sample.
Já conhecia a música deles?
Tenho dois filhos, de 24 e 22 anos. Nessa altura eles deviam ter uns 15 ou 16, por aí. Lembro-me que estava jogando ténis com eles e ligaram-me da minha editora, falando que havia uma gravação de fora, queriam a minha autorização e que eu escutasse. Perguntei quem era. Disseram que era o Jay Z e os meus filhos ouviram. “Papá, o que é que o Jay Z te quer? Ele é o maior rapper do mundo!” Foi assim que o conheci.
Vem dar um concerto no Lisb-On, onde também atuam os Azymuth no dia antes. Eles foram formados para tocar consigo, certo?
Eu tinha feito uma música chamada “Azimuth”, acho que 1969-70, era abertura de uma novela sobre corridas de automóvel. Uns anos depois, quando o Emerson Fittipaldi foi campeão mundial de Fórmula Um, resolveram fazer um filme sobre a vida dele. Eram dois realizadores, Hector Babenco, que morreu há pouco, e Roberto Farias. Convidaram-me para fazer a banda sonora e pediram, como gostavam muito dessa música “Azimuth”, se poderia desenvolver esse tema para a abertura do filme. Eu fiz isso e quem tocou comigo foram os futuros Azymuth: o [José Roberto] Bertrami, no piano, o Alex [Malheiros] no baixo e o [Ivan] Mamão [Conti] na bateria. Não podia assinar com o meu nome porque era contratado por outra editora, a Odeon, e aquilo estava sendo gravado na Philips. O produtor era o Armando Pittigliani, que sugeriu “Conjunto Azymuth”, já que não tinha nome. Ficou assim e eles permaneceram juntos.
E vai tocar essa canção?
Claro, começa com essa, é a primeira. Vou ter a “Com Mais de 30”, “Garra”, “A Paraíba não é Chicago”, dos discos de 80, “Bar Inglês”, que gravei para a Far Out, “Arranca Toco”, “Papo de Maluco”, toco o “Estrelar”, toco o “Parabéns (Dança do Daniel”), de que gosto muito, “Mentira”, enfim. Ah, claro, e vai ter “Samba de Verão”.
Todas as informações sobre o Lisb-On no site oficial.