Título: “O Sino”
Autora: “Iris Murdoch”
Editora: Relógio D’Água
Páginas 336

iris murdoch

Nos últimos anos, a editora Relógio D’Água tem aperfeiçoado as suas edições no que diz respeito à qualidade material das mesmas: a encadernação é mais robusta e simultaneamente maleável, já não se soltando o miolo da capa; o formato, o tipo de papel, a mancha gráfica e a impressão ficaram indiscutivelmente melhores. No que toca às obras que têm sido integradas no catálogo, também aí a qualidade é, em quase todas as circunstâncias, irrepreensível. Perante este panorama, o que surpreende é que em alguns casos, como em O Sino, de Iris Murdoch, a tradução e a revisão (especialmente quando são nomeadas três revisoras na ficha técnica) deixem tanto a desejar.

A tradução mantém a frieza, a imparcialidade, o tom de distanciamento que Murdoch usa na língua original, o inglês – um tom analítico, de frases curtas, que se expande apenas na descrição de lugares e elementos da Natureza. Contudo, certas escolhas de vocabulário (como o uso do termo “fineza” enquanto tradução de “obligingly” – p. 26) não são felizes, fazendo o original parecer linguisticamente datado quando, apesar de ter sido publicado em 1958, não o é. O lugar em que é colocada a partícula “se” em formulações como “de que se não gosta” (p. 186) – por oposição à formulação mais corrente “de que não se gosta” – contribui para o mesmo efeito, e tudo se agrava quando a estas ocorrências se juntam erros gramaticais graves e gralhas de vária ordem. Por explicar fica também o facto de não constar desta edição a dedicatória a John Simopoulos, filósofo e colega de Murdoch em Oxford, para além de amigo da autora e do seu marido, John Bayley.

A escolha da ilustração para a capa desta edição é, porém, inteligente. A composição é feita sobre um pormenor do quadro “Ellen Terry (‘Choosing’)”, de George Frederic Watts, e a subtileza está naquele parêntesis: “escolhendo”. Se há algo de que O Sino trata é das escolhas que fazemos e das consequências dessas mesmas escolhas, mas com uma inflexão própria do tema do livro: até que ponto alguém escolhe ter fé, o que significa ter fé e de que modo essa fé pode ser manifestada.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Sermão de domingo

A maior parte da acção passa-se em Imber Court, local separado apenas por um muro da Abadia de Imber, onde estão reclusas freiras Beneditinas que fizeram o voto de permanecer num só lugar. Nesta Abadia, as freiras são admitidas em número muito pequeno e, quando ali entram, fazem-no para sempre, deixando de ter a possibilidade de sair. Em Imber Court, por sua vez, é estabelecida uma comunidade laica formada por pessoas cujo objectivo é o afastamento do mundo, afastamento que implica deixar também para trás o próprio passado, não havendo restrição à admissão dos seus membros.

Escolher esta comunidade implica deixar de falar da vida que se teve antes como se, escolhendo estar ali, se escolhesse começar uma vida nova. Murdoch está a colocar num lugar confinado um conjunto de pessoas e a observar as interacções entre elas, embora a atenção maior se concentre em Michael Meade, o fundador da comunidade, Dora Greenfield, a mulher de Paul, historiador de arte que se refugia na comunidade para estudar os manuscritos medievais da Abadia de Imber, e Toby Gashe, um rapaz de dezoito anos que após a estadia de Verão em Imber Court ingressará em Oxford. É sobre os processos de pensamento de Michael, Dora e Toby que Murdoch se debruça, descrevendo com minudência as incertezas, os avanços e recuos relativos a uma tomada de decisão, e o escrutínio posterior das razões de certas acções e comportamentos.

Estas três personagens são perscrutadas no que a dilemas de natureza moral diz respeito, precisamente porque parecem ser as que mais os têm – logo na sua ida de comboio para Imber Court, Dora debate-se interiormente (e longamente) sobre as implicações morais de ceder ou não o seu lugar a uma senhora mais velha que se encontra em pé na carruagem (pp. 15-16). Contudo, os outros membros de Imber Court não são menos complexos no seu carácter, até porque as suas motivações para estarem naquela comunidade vão sendo reveladas (por vezes num tom de natureza quase psicanalítica por parte da autora) ao longo do livro. É à medida que vamos percebendo o como e o porquê da reunião de tal grupo naquele local que é possível fazer desde logo uma distinção crucial entre as pessoas de Imber Court e as freiras da Abadia de Imber: as primeiras têm razões para lá estar, e as segundas estão lá por vocação; a partir destas duas categorias de motivação de acção e comportamento, Murdoch constrói a problemática subjacente a esta obra: pode a fé ter modalidades?

O carácter de uma pessoa e o quanto o mesmo deve ser tido ou não em conta é um dos temas de discórdia entre os dois membros mais fortes da comunidade. Embora seja Michael o líder, é James Tayper Pace, fundador de uma colónia de assistência social e de uma série de clubes para rapazes no East End de Londres (obrigado a abandonar essas funções devido a problemas de saúde), que parece ser mais adequado a assumir essa posição: é a ele que os outros membros recorrem naturalmente em busca de conselhos e orientações e é ele que é visto como um exemplo de conduta. Em cada domingo, uma das pessoas da comunidade fica encarregada do sermão da missa matinal; quando chega a vez de James, percebemos em que consiste a sua crença e em como essa crença deve ser colocada em prática:

“O estudo da personalidade, e até todo o conceito da personalidade, é, na minha maneira de ver, um perigo para a virtude. (…) Deveríamos considerar não o que nos dá prazer ou o que nos desagrada, moralmente falando, mas o que nos é permitido e o que nos é proibido.” (pp. 129-130)

Para James, as regras que norteiam as nossas acções estão definidas e são indiscutíveis em qualquer caso e para qualquer pessoa; para Michael, o carácter de cada um é algo que tem sempre de ser considerado, mesmo em questões de fé:

“O requisito verdadeiramente essencial para se viver uma vida virtuosa (…) é possuir-se uma conceção tanto quanto possível exata das capacidades próprias. (…) Uma pessoa deve estudar com o maior cuidado a melhor maneira de utilizar as potencialidades de que é dotado. (…) Não nos devemos arrogar ações que de direito pertencem àqueles cuja visão espiritual é mais alta, ou mesmo só diferente, da nossa. Se o tentarmos, só resultarão desastres e a verificação de que o ato praticado não é, afinal, aquela boa ação que pretendíamos, mas algo muito diferente.” (pp. 201-205)

O sermão de Michael, feito no domingo seguinte, é uma resposta directa a James e resulta de uma tentativa de Michael justificar a si próprio um acto recente que o atormenta e do qual ele pensava não poder, de novo, ser o agente. No final de uma ida à cidade de Swindon para adquirir um cultivador mecânico, Michael não resiste e beija Toby, que o acompanhara na viagem. A partir deste momento, regressam as memórias do que se tinha passado há dez anos, quando Michael era professor de liceu de Nick Fawley, que também se encontra agora na comunidade de Imber Court, e com quem manteve durante um período curto uma relação que não chegou a ser consumada. Michael pensou que desta vez, com Toby, e apesar da sua crescente atracção pelo rapaz, teria a capacidade de agir de forma diferente; o seu sermão é uma justificação para não ter sido capaz disso: almejar a fazer diferente seria almejar a ser uma pessoa diferente.

Questões de fé

Não é um acaso o livro começar e terminar com Dora, que vai para Imber Court numa tentativa de reconciliação com o marido; Paul é obsessivo e controlador e Dora sente-se “como se não passasse de uma ideia no cérebro dele” (p. 39). Quando Paul começa a falar num regresso a casa, Dora pensa como ele “exultava com a determinação quase certa de levar consigo a sua mulher e de a instalar como se faz a uma obra de arte – arrumando-a no lugar que se lhe destina, fechando depois a porta à chave” (p. 132). É contra esta impessoalidade que Dora luta, a mesma impessoalidade que parece ser crucial na devoção religiosa e com a qual Michael também se debate: por se ver incapaz de abdicar da sua personalidade, Michael considera a sua fé “defeituosa” (p. 167).

Mas até que ponto a fé e as suas manifestações são um assunto pessoal? Numa ida à National Gallery, em Londres, Dora dá por si a ter um arrebatamento místico em frente ao quadro que Thomas Gainsborough pintou das suas duas filhas:

Olhou para a tela de Gainsborough, radiante, melancólica, terna, poderosa, e sentiu o desejo súbito de cair de joelhos à sua frente, de a beijar, de chorar” (p. 191).

A descrição da reacção de Dora é em tudo semelhante à descrição de um sentimento religioso experienciado por um devoto. A relação com a fé, para Dora e para Michael, está associada a coisas, lugares e pessoas, a uma realidade palpável que cause sensações. Quando Dora descreve o que sente por Paul como “um amor triste e sem esperança, como o que se pode sentir por alguém com quem nunca se falou” (p. 181), pode pensar-se que Deus, para Dora e para pessoas como ela, pode estar nesta posição: no lugar de alguém com quem nunca se falou ou que, pelo menos, nunca respondeu.

Há um momento em que, na sua curiosidade e intrepidez, Toby escala o muro que separa Imber Court da Abadia de Imber, onde a entrada é proibida a alguém que não tenha feito o voto das freiras Beneditinas. No cimo desse muro, a reacção é de desilusão: “a aparência era exactamente a mesma lá dentro e cá fora” (p. 177). Contudo, esta semelhança e subsequente desapontamento só podem ser sentidos por pessoas que, em vez de vocação, têm razões para professar uma fé. Ao surpreender duas freiras num passeio, Toby ouve uma delas rir e fica “estranhamente comovido ao ouvir aquela risada. É claro, não havia razão alguma para que as freiras não se rissem, mas a verdade é que, normalmente, não as imaginava a rirem-se. Mas tal riso, pensou ele, devia ser uma coisa muito boa, mesmo muito boa: uma das melhores coisas do mundo. Ser virtuoso e alegre ao mesmo tempo devia ser, com certeza, o ponto mais alto dos destinos humanos.” (p. 141)

Tal como Dora, que já várias vezes fugira de Paul, todos os membros da comunidade estão a fugir de algo e tomam o refúgio em Imber Court como um acto de virtude por si só. A santidade parece ser uma tentação tão grande quanto o pecado, mas nenhuma destas pessoas poderia dar uma risada semelhante à daquela freira – tal como nenhuma seria capaz de abdicar da sua liberdade de movimentos. Talvez por isso, e porque podiam, todos tenham voltado ao mundo de que tanto queriam afastar-se: há vários caminhos para a santidade mas, para a maior parte de nós, aqueles que nos são possíveis não podem ser feitos em reclusão.