De há poucos anos para cá, sempre que chegam às montras as colecções de Outono-Inverno, lá aparece uma ou outra marca a impingir-nos o revivalismo grunge, geralmente traduzido em camisas aos quadrados, vestidos, botas e cara de quem comeu e não gostou. Aos 37 anos, isto representa não tanto uma devassa das minhas memórias como o reconhecimento de uma era com o devido recuo crítico. Em suma: estou velha.
No que se refere à música, esse recuo crítico permite que se afira da relevância de certas obras que passam o teste do tempo com distinção; já no que à moda diz respeito, tudo se resume à promoção do datado a vintage através de um processo de branqueamento do nosso mau gosto de outrora. Para uma geração precocemente nostálgica e vítima de uma efemeridade vertiginosa, nada como um catálogo da Zara para ajudar a fazer as pazes com o passado, pelo menos durante uma estação.
Antes de nos indignarmos que nem adolescentes ofendidos com o uso abusivo do termo “grunge” no mundo do pronto-a-vestir, gostava de partilhar convosco um episódio da minha vidinha: foi depois da morte de Kurt Cobain, em 1994, que me travei de razões com um colega de outra turma, a propósito da tragédia. A discussão não foi cara a cara, mas sim numa rede social chamada carteira da sala de aula, onde durante dias rabiscámos argumentos como “grunge is dead” (escreveu ele), contra-argumentos como “grunge will never die” (respondi eu) e toda uma conversa orgulhosamente imberbe sobre o género enquanto invenção da indústria musical. Na altura, o meu tribalismo incondicional toldava-me o espírito, pelo que guardo a memória de uma sensação de admiração algo intimidante pelo meu colega. Mas ficámos amigos e, mais bonito ainda, eu viria a trabalhar no jornalismo musical como sempre sonhara e ele continuaria a seguir o sonho do rock como músico.
Menos devoção, mais informação e mais de vinte anos depois de vandalizar as carteiras da escola, parece-me bastante óbvio que isso do grunge nunca existiu. Foi o saco onde se enfiaram bandas conterrâneas (de Seattle) e contemporâneas (do início dos anos 90), umas mais parecidas entre si que outras, muitas delas a passar ao mesmo tempo para o mainstream criando, involuntariamente, a necessidade de um sentido de movimento e de comunidade. Era só rock’n’roll, mas havia um mercado de adolescentes aborrecidos, sedentos de um sentido de pertença — para assim poderem fingir que não pertenciam a tudo o resto.
Adolescentes, MTV, dinheiro: o início do grunge enquanto género (porque a palavra, propriamente, antecede-o) corresponde à “morte da inocência” de toda uma cena musical. São palavras de Chris Cornell, vocalista dos Soundgarden e mentor dos Temple of the Dog, a banda que acabaria por assinalar sem querer esse momento. O projecto surgiu como tributo a Andrew Wood, companheiro de casa de Cornell e vocalista dos Mother Love Bone (com os ainda proto-Pearl Jam Jeff Ament e Stone Gossard), que morrera de overdose aos 24 anos. E o seu único álbum, homónimo, foi lançado em Abril de 1991, o glorioso ano que mais tarde havia de parir Badmotorfinger dos Soundgarden, Ten dos Pearl Jam e Nevermind dos Nirvana (que, lá está, tem pouco a ver com esta história), entre outros discos que marcaram a legitimação comercial de outras bandas até então independentes.
Cornell — que juntamente com Ament, Gossard, o baterista recém-chegado aos Soundgarden Matt Cameron e os quase famosos Mike McCready e Eddie Vedder formou os Temple of the Dog — afirma hoje, 25 anos depois e no regresso desta superbanda aos palcos, que este terá sido talvez o último disco que compôs sem o mínimo constrangimento comercial. Era apenas um disco de amigos a homenagear um amigo. E neste disco se percebe que o que mais tarde seria chamado de grunge era uma súmula da história do rock, dos blues ao metal, que podia vestir camisas quadrados ou às riscas. E que, ainda livre das expectativas criadas pela prateleira, foi o princípio e o fim de uma história que ainda estava por contar.
Ana Markl é guionista, apresentadora no Canal Q e animadora de rádio na Antena 3