A música sempre teve no amor e na desgraça as duas grandes fontes de inspiração. Esta atração é explicada pelas emoções, faz parte da natureza humana, nem precisamos de ser particularmente românticos para encontrar uma ou outra lamechice no leque das preferências pessoais.
Geralmente a receita passa por recorrer à lágrima triste ou ao grito de raiva, já menos frequente é cantar a desgraça enquanto se dança. Foi o que fez Aleksandra Denton, com a edição do álbum de estreia no passado mês de julho. Cruzámo-nos com ela no festival Vodafone Paredes de Coura, este agosto, horas antes da segunda presença em palcos portugueses.
Esteve em Lisboa há dois anos, no Vodafone Mexefest. Na altura apenas tinha um punhado de canções, uma delas a valente xaropada em que se tornou o tema “Touch”, gasto de tanto se ouvir. É um velho talento dos media, isto de esgotar um tema até à exaustão, mas acabou por servir de pretexto para descobrir a artista britânica, paulatinamente. Do mal, o menos.
Isto porque Shura, 25 anos, filha de pai inglês e mãe russa (Shura é o diminutivo de Aleksandra, em russo), tem muito mais talento que este single batido, começando pela extraordinária capacidade de encontrar um equilíbrio entre a desgraça das letras que escreve e uma rigorosa noção de ritmo, que não deixa descarrilar a coisa para o tonto ou ridículo. É algo que ela não quer ou, de outra maneira, uma estratégia ponderada que encontrou para compor, tocar e cantar (sim, ela faz tudo) aquele que é, palavras dela, “um álbum sobre nostalgia, sobre relações passadas que não correram bem, sobre a perda da inocência” e sobre o sentir-se mais velha, mesmo sabendo que não o é.
Aleksandra tem noção da idade que tem (25 anos) e disse-nos: “Não devia dizer isto, mas eu não me sinto nova”. Como quem pede desculpa por existir. De repente tomou consciência da morte, de como a vida fica mais difícil quando se adquirem responsabilidades. Crescer é uma chatice.
Não é só figura, Shura já percebeu que a vida é assim, não tem nos olhos ou na voz o embargo da miúda desgraçadinha, pelo contrário. É simpática, descontraída, prestável no trato direto, “boa onda” sem exageros, tudo a bater certo com o pulsar que tiramos de Nothing’s Real, uma sopa de canções feitas para dançar, como no tema que dá o nome ao álbum; ou logo a seguir com a pergunta “What’s Gonna Be?”; ou ainda numa outra, “What Happened To Us?”. Só pelos títulos se sente a aflição.
Os braços sobem ao ar com “Make It Up”, seguramente a canção pop mais completa do disco. É mesmo uma arte, isto de pintar com música de dança um disco sobre “oportunidades perdidas”, como nos disse. Mas a maior virtude de Nothing’s Real está no equilíbrio de toda esta light pop com outros três momentos-chave: primeiro “Kidz ’N’ Stuff”, que aparece colado com “Indecision”, duas canções sobre o mesmo assunto (ai a vida e as relações) que se complementam mas com abordagens completamente diferentes. A primeira é uma balada com um piquinho de pop experimental, a segunda é dance pop de primeira linha, uma transição sem paragem que é das coisas mais bem feitas que ouvi nos últimos tempos.
Depois, quase a fechar, “White Light”, uma tirada de 10 minutos (com intervalo pelo meio) que é, provavelmente, a faixa mais interessante de Nothing’s Real; pela estrutura cuidada, complexa sem se tornar difícil, cheia de elementos que vão aparecendo a cada passagem; porque tem nos minutos finais uma síntese do que são as dores de crescimento, onde estão não só as desgraças que fazem de todos gente, mas também aquela parte do mundo que nos segura nessa aventura.
A maioria de nós sabe o quão poderosa é esta passagem, seja ela mais ou menos sofrida. O modo como entramos na idade adulta desenha boa parte daquilo em que nos tornamos. Então se é assim, que seja a dançar e a rir.