Publicado o ano passado, o “best-seller” maciço da inglesa Paula Hawkins, A Rapariga no Comboio, que também vendeu como pão quente em Portugal, é um daqueles livros que só lhe falta gritar: “Adaptem-me ao cinema! Adaptem-me ao cinema!”. Mais rápida e mais abonada que os demais, Hollywood chegou-se logo à frente e a DreamWorks arrebatou os direitos para o filmar. Por consequência, a ação, que se passa entre Londres e os seus arredores, foi transplantada para Nova Iorque e os seus subúrbios afluentes, e há apenas um intérprete britânico no elenco, Emily Blunt, que faz de Rachel Watson, a titubeante e incerta heroína de “A Rapariga no Comboio”. A realização ficou a cargo de Tate Taylor, autor do politicamente correctíssimo “As Serviçais”, e do bem melhor “Get On Up”, sobre James Brown.

[Veja o “trailer” de “A Rapariga no Comboio”]

Rachel é um caco. Ficou sem a sua linda casa nos subúrbios quando o ex-marido a trocou pela amante, perdeu o emprego e começou a meter-se pesadamente nos copos, ao ponto de já ter “brancas” de memória. Vive com uma amiga que a acolheu e a quem mente dizendo que ainda tem trabalha. Na verdade, passa o dia a andar de comboio para a frente e para trás enquanto se embebeda e fantasia sobre as vidas das pessoas com vidas — aparentemente — normais que moram nas casas semeadas à beira da linha, uma das quais já foi sua. E é à porta desta que de vez em quando se vai postar, alcoolizada, a pasmar para a nova mulher do ex-marido e para o bebé dela, amedrontando-a.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

[Veja a entrevista com Emily Blunt]

À beira de virar um farrapo e a ver o mundo através de um cada vez mais espesso véu alcoólico, Rachel fixa-se de forma muito pouco sã num jovem casal de antigos vizinhos, Megan e Scott, que parecem ser o retrato da perfeição conjugal, fantasiando sobre ela num misto de autocomiseração e masoquismo. Uma manhã, depois de passar no comboio por casa deles, vê uma cena inesperada, que destoa da sua fantasia. Pouco depois, Megan desaparece sem deixar rasto, há suspeitas de homicídio e, sem saber bem como, nem tendo a menor ideia do que terá acontecido, Rachel vê-se desastradamente envolvida no caso.

[Veja a entrevista com o realizador Tate Taylor]

Com a constante jiga-joga de pontos de vista – sobretudo o da copofónica e intermitente da realidade Rachel – e de “flashbacks”, o recurso a narradores de pouca ou nenhuma confiança, a técnica de estar sempre a trocar as voltas narrativas ao espectador, e de lhe ir atirando migalhas daquilo que parece ser informação mas afinal não é, e o brincar ao “as aparências iludem”, “A Rapariga no Comboio” acaba por não ser o que parece. Ou seja, faz-se de filme intrigante, inteligente e habilidoso, quando na verdade é previsível, espertalhão e laborioso. Qualquer leitor ou espectador de policiais minimamente batido perceberá ao fim de algum tempo a rasteira que Paula Hawkins e Tate Taylor lhe estão a querer passar, e qual é o busílis do enredo. E quando este dá a grande pirueta climática, já a topámos uma boa meia hora antes.

[Veja a entrevista com a escritora Paula Hawkins]

Taylor recorre ainda ao milho para pardais do discurso do “espectador-voyeur-através-da-personagem-principal” e ao cliché da fachada hipócrita das vidas da classe média suburbana, e até dá umas cotoveladas na direção de Hitchcock, mas é tudo inútil. “A Rapariga no Comboio” é um daqueles casos de menos arte do que artifícios, de muita parra de inquietação e pouca uva de “suspense”, um “thriller” psicológico com poucos “thrills” e ainda menos psicologia. E que pena ver uma atriz com as qualidades de Emily Blunt não poder mostrar o que vale (como fez em “Sicario-Infiltrado”, por exemplo), limitada como está por uma personagem tão exasperante e deprimente no seu desamparo como Rachel. Mesmo assim, ela é o que mais se aproveita deste filme que nos vende um bilhete de primeira classe para o que afinal é uma viagem em segunda.