Na base das escusas do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais — admitidas em entrevista ao DN e à TSF — para apreciar processos relativos a contribuintes cuja identidade o próprio não revelou, não estarão ligações empresas, mas sim relações pessoais de grande intimidade. Ao que o Observador apurou, Fernando Rocha Andrade tem um entendimento alargado sobre as situações em que não deve interferir, onde inclui amigos ou, por hipótese, a pessoa com quem vive em união de facto (embora este impedimento esteja previsto na lei).

Em causa, no entendimento do governante, não estarão apenas os impedimentos (previstos no artigo 69º do Código de Procedimento Administrativo), mas também o dever de pedir escusa (artigo 73º do mesmo diploma). Além dos impedimentos referidos diretamente na lei (onde se incluem, por exemplo, os familiares), o tal artigo 73º considerado pelo governante refere que o titular do cargo público também deve pedir escusa na “circunstância pela qual se possa com razoabilidade duvidar seriamente da imparcialidade da sua conduta ou decisão”.

O Observador sabe que o entendimento de Rocha Andrade sobre os pedidos de escusa é que nem sempre se referem a relações favoráveis, mas também se devem pedir quando houver grave inimizade ou grande intimidade. Fernando Rocha Andrade terá entendido que, nestes casos, deve pedir escusa — e passar a decisão para o ministro das Finanças, Mário Centeno — quando estiverem em causa decisões que envolvam: familiares e pessoa com quem vive em união de facto (o que está previsto no Código de Procedimento Administrativo); amigos próximos; entidades – não necessariamente empresas, nas quais tenha exercido funções no passado; ou até pessoas com quem tenha particular inimizade (esta última razão, sabe o Observador, Rocha Andrade nunca terá invocado).

A base das escusas estará assim centrada em relações pessoais e não na vida profissional. Até porque Fernando Rocha Andrade não exerceu atividade de advogado nos últimos anos (embora seja titular de cédula profissional, com inscrição suspensa a seu pedido). A atividade profissional de docente universitário e o doutoramento tiraram-lhe, aliás, o tempo para se dedicar à emissão de pareceres em Direito Fiscal nos últimos anos.

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O problema da lista de impedimentos no Governo

Toda esta nova polémica envolvendo o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais começou esta quarta-feira de manhã quando, em entrevista ao DN e à TSF, o secretário de Estado adensou o mistério sobre o motivo das suas escusas. A pergunta dizia respeito ao facto de ter pedido para não tomar decisões sobre a Galp, por causa das célebres viagens ao Euro:

A única questão que aconteceu é que passa a haver mais uma empresa na qual o meu chefe de gabinete passa a adotar o procedimento de reenviar a decisão para o senhor ministro das Finanças. Até agora, não tive de tomar nenhuma decisão relativamente a essa empresa [a Galp], mas já me foram presentes decisões para tomar relativamente a outras entidades em que tive a necessidade, precisamente, de invocar essa escusa, porque se verificavam situações que comprometiam a minha capacidade de decisão.

Rocha Andrade alargava ainda as escusas aos colegas, dizendo, na mesma entrevista, que “todos os membros do Governo têm uma lista de entidades sobre as quais não devem tomar decisões”. É certo que, também esta terça-feira, fez declarações no sentido de que, na base da escusa, estariam relações pessoais. Ao justificar-se o secretário de Estado afirmou que “toda a gente que chega ao Governo vem de algum lado. E, deste algum lado de onde vem, dessas relações familiares, das anteriores ocupações profissionais ou cívicas, toda a gente tem um conjunto de situações sobre as quais não deve decidir”. E até pessoalizou no exemplo:

Se o meu pai reclamar relativamente a uma questão fiscal, é evidente que não vou ser eu a decidir sobre uma questão do meu pai”.

A entrevista motivou uma reação do PSD. Luís Marques Guedes pediu explicações, para saber se o Governo estava em part-time.

A declaração que nada dizia

Ficou claro na entrevista ao DN e à TSF que o secretário de Estado tinha pedido escusa em algumas situações, mas não se sabia ao que se referia: as suas declarações de rendimentos públicas aumentavam a dúvida porque nada do que tinha apresentado justificava qualquer impedimento. O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais não declarou — no âmbito das obrigações que tem junto do Tribunal Constitucional (TC) — nenhuma ligação que fosse passível de ser incompatível com as suas funções ou que obrigasse a uma situação de escusa. Na declaração entregue no Palácio Ratton, consultada esta quarta-feira pelo Observador, não havia qualquer dado que justificasse aquilo que disse na entrevista.

Participações em empresas ou sociedades? Nada. Trabalho independente? Zero. Sociedades ou empresa do cônjuge? Divorciado. Rendimentos? 31.178, 65 euros, como professor na Universidade de Coimbra. Restava, assim, tendo em conta a declaração entregue no TC, um lote de situações irrelevantes do ponto de vista legal: um Seat Ibiza e um Audi — ambos com mais de 10 anos — 872 ações da EDP, 380 da EDP-Renováveis, 49.841 ações do BCP, um PPR de 9.688 euros no BBVA e 73.000 euros em fundos de investimento no Deutshe Bank. Ou seja: nada passível de obrigar a uma assunção de incompatibilidade do governante.

O entendimento do secretário de Estado para pedir escusa na apreciação de certos processos ao nível fiscal será mais alargado do que está legalmente previsto. Este entendimento esbarra, porém, num aspeto: quando assumiu, na entrevista, que havia uma lista de incompatibilidades (sua e de outros governantes). Estas são situações de avaliação de caso-a-caso (que decorrem do Código de Procedimento Administrativo) e não obrigam à entrega uma lista como sugeria na entrevista que deu esta quarta-feira.

Os políticos são obrigados, isso sim, à apresentação de uma declaração de “inexistência de incompatibilidades ou impedimentos” no TC. Não se trata da declaração de rendimentos e interesses (que é consultável), mas de um documento que fica reservado. Não foi possível ao Observador apurar se Rocha Andrade admitiu ao Constitucional alguma dessas incompatibilidades. Os políticos estão proibidos, pela lei das incompatibilidades, de tomarem decisões sobre empresas onde eles ou familiares diretos tenham mais de 10% de capital.

Questionado pelo Observador, o secretário de Estado não esclareceu a que entidades se referia quando disse que já pediu escusa ao longo do atual mandato.