“Perdeu-se uma certa ética social. Perdeu-se um pouco a noção dos limites.” A afirmação é do médico psiquiatra Pedro Afonso e tem como alvo as empresas que cultivam uma realidade cada vez mais emergente ao promoverem o excesso de carga horária. Para o especialista, vivemos numa sociedade que dá primazia ao sucesso e ao materialismo, e também numa cultura empresarial que, nas suas palavras, está a promover uma nova forma de escravatura.

O professor auxiliar de Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Lisboa, do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica e da AESE – Business School foi o orador de um debate organizado pela ACEGE (Associação Cristã de Empresários e Gestores) sobre o impacto do excesso de trabalho na saúde psíquica e na vida familiar, realizado esta quinta-feira em Lisboa.

Pedro Afonso não é novo nestas andanças e já antes falou sobre os problemas que podem derivar da privação de sono — situação cada vez mais frequente mas ainda muito desvalorizada. Desta vez, o especialista — que também assina alguns artigos de opinião no Observador — focou-se nas atuais condições de trabalho citando um estudo desenvolvido na Business School, a ser oficialmente divulgado em breve, segundo o qual 53 por cento dos inquiridos admitiu trabalhar mais do que as 48 horas semanais propostas pela OCDE.

Em entrevista, Pedro Afonso afirma que o trabalho está cada vez mais a invadir a nossa vida pessoal e a afetar também a vivência familiar, crianças incluídas:

[As empresas] quase que obrigam as pessoas a fazer esta escolha: ou tens carreira profissional ou tens filhos. Eu não posso aceitar isto numa sociedade justa e equilibrada.”

Foto Pedro Afonso_ Medico_Psiquiatra

O psiquiatra Pedro Afonso. © DR

Durante a conferência falou na questão das novas tecnologias esbaterem a fronteira entre o trabalho e o lazer, uma realidade com a qual já estamos familiarizados. Mas também referiu que estas foram uma catapulta para o trabalho sombra. O que é isso?
O trabalho sombra é um conjunto de tarefas do dia a dia que outrora eram executadas por profissionais e que hoje em dia, graças às novas tecnologias, passaram a ser feitas por nós consumidores. O objetivo das empresas ao fazerem isso não é propriamente facilitarem-nos a vida, mas sim transferirem o custo do trabalho para o consumidor e, assim, obter mais lucros. Isto origina, por sua vez, mais desemprego. Além de que prejudica os consumidores porque fá-los perder tempo a executar tarefas que poderiam ser executadas por profissionais: falamos do simples facto de irmos ao supermercado e passarmos as nossas próprias compras na registadora automática, ou do reservarmos online uma viagem com estadia e hotel, em vez de irmos a uma agência de viagens. Mesmo o pagamento das nossas contas, há alguns sítios em que temos de ser nós a fazer o download das nossas faturas. Acabamos por perder muito tempo na nossa vida.

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Uma das questões principais da sua apresentação foi o estudo que fez, com uma amostra de cerca 400 ex-estudantes da AESE, a primeira “Business School” de Portugal. Quais foram as principais conclusões da investigação?
O estudo evidencia alguns aspetos, sendo que o primeiro recai sobre a dimensão da carga horária semanal — 53 por cento de pessoas trabalham mais de 48 horas por semana. Quando iniciei o estudo não imaginaria que 53 por cento da população que nós estudámos [pessoas na casa dos 40 anos] estivesse nesse regime. Imaginava que seria a exceção e não a generalidade, mas não, já é maioria.

O estudo mostra ainda que 75 por cento do grupo que admitiu trabalhar em excesso costuma levar trabalho para casa…
Sim, o que mais uma vez corrobora a ideia de que o trabalho está a invadir cada vez mais a nossa vida pessoal e familiar. Já não trabalhamos apenas no local de trabalho nem nas horas supostamente estipuladas. O trabalho migrou para a outra parte da nossa vida.

Parece que estamos cada vez mais habituados a isso.
Ou sentimos cada vez mais isso porque somos pressionados para tal. Há uma pressão das instituições profissionais para que isso aconteça e, individualmente falando, é muito difícil de contrariar esta forma de estar. Por isso é que faço um apelo ético às empresas: parem com isto!

Os dados analisados revelam também outra realidade interessante: que quem trabalha mais são as chefias, ou seja, que o fenómeno acontece de cima para baixo.
A ideia que passou muitas vezes era a de que as pessoas eram muito exploradas pela carga horária excessiva e que isso acontecia principalmente nos trabalhadores mais indiferenciados, mas não é verdade. Esta população estudada é composta por pessoas com habilitações superiores, portanto está-se a trabalhar cada vez mais em cargos de maior responsabilidade, por pessoas que são diferenciadas, que estudaram e que, muitas delas, têm poucos anos de atividade. Já existe esta pressão.

Mas porque é que acha que isto acontece?
Há vários fatores. O primeiro fator é o desejo de sucesso profissional e o segundo passa pelo ambiente profissional que assim o impele — quem trabalha mais é visto como uma pessoa mais empenhada e quem não o faz é olhado como alguém que não veste a camisola. E depois quem sai a horas é de imediato censurado pelos pares e cria-se aqui uma espécie de sequestro coletivo.

Trabalhamos demasiadas horas, uma realidade que também interfere nos nossos ciclos de sono. Já disse que não conseguimos habituar o nosso organismo a dormir menos, mas abdicar de dormir é das primeiras coisas que fazemos.
É mais fácil roubar tempo ao sono, mas o dia não estica e tem 24 horas. A nossa necessidade de dormir não é passível de ser alterada, é uma necessidade. Nós não conseguimos habituar-nos a dormir pouco, isso é um mito. O que está a acontecer nas sociedades mais desenvolvidas é que está a existir progressivamente uma diminuição do tempo dedicado ao sono. As pessoas estão a dormir menos tempo do que aquilo que necessitam. Isto a médio e longo prazo tem consequências porque aumenta o risco de acidentes, nomeadamente o risco de acidentes de trabalho, sendo que as pessoas andam com sonolência excessiva durante o dia, perdem produtividade. As pessoas não sabem, mas aumenta o risco de obesidade e no caso das crianças, que também andam a dormir cada vez menos, promove a diminuição de algumas hormonas como é o caso da hormona do crescimento.

Que problemas mentais podem originar da diminuição da horas de sono?
A falta de sono tem uma relação bidirecional, ou seja, se dormirmos pouco isso aumenta a probabilidade de termos doenças psiquiátricas, nomeadamente perturbações depressivas. Por outro lado, quase todas as doenças psiquiátricas dão alterações do sono.

Portugal é um dos países da Europa onde mais se compra per capita ansiolíticos e antidepressivos. Deu a entender que a culpa não é só do excesso de trabalho.
Esse problema devia ser estudado porque temos dados epidemiológicos que dão conta que em Portugal não só há um aumento de consumo de psicofármacos, em relação a outros países, como há um aumento da prevalência de doenças psiquiátricas. Seria importante encontrarmos as causas. Acho que uma das causas está aqui também, no facto de andarmos a dormir pior e de termos uma carga horária excessiva. Repare que 12 por cento da nossa amostra estava a consumir antidepressivos e ansiolíticos.

Comente a seguinte frase proferida durante a sua apresentação: “Casas vazias, crianças desequilibradas”.
As crianças acabam por também ser afetadas por este processo porque passam cada vez mais tempo nos infantários, cada vez mais tempo em atividades [extracurriculares]. As crianças chegam a casa cansadas e, além disso, trazem trabalhos da escola para casa. São vítimas deste corrupio, tanto que em Espanha estão a fazer uma campanha contra os trabalhos de casa. As crianças têm de ter tempo para brincar. Digo casas vazias porque na maior parte das famílias, atendendo ao estilo de vida atual, o tempo que se permanece em casa, subtraindo o tempo do sono, é cada vez menor. As casas não deviam estar vazias. Também é preciso tempo para criar laços familiares.

Trata-se de uma cultura empresarial?
Sim, tudo leva a crer que sim. Já eram as minhas suspeitas pela minha experiência clínica e este estudo que fizemos veio corroborar precisamente isso.

Há empresas que marcam reuniões ao final de dia e que pedem horas a mais aos colaboradores. Perdeu-se a ética social?
Sim. Passou-se a considerar normal ligar às pessoas a horas que outrora eram consideradas horas impensáveis. Marcar uma reunião às sete horas… mas isso é admissível eticamente? Não me parece.

Desde quando é que o trabalho se tornou tão urgente?
Vivemos numa sociedade que dá primazia ao sucesso, ao materialismo. Em que se pratica uma certa cultura do efémero, porque nós não vamos passar a vida trabalhar. Há pressão social ligada ao estatuto que se adquire com uma boa carreira e consequente aumento de vencimento — isso acaba por ser um combustível, uma forma de alimentar isto. Aquilo que as empresas dizem é “se queres progredir tens de trabalhar mais do que os outros”. No outro dia acompanhei uma pessoa que me confessou que quando soube que estava grávida a primeira reação foi chorar porque pensou para si própria que tinha acabado ali a sua carreira profissional na advocacia. Depois sentiu-se arrependida por ter chorado, mas há esta ambivalência. Quase que obrigam as pessoas a fazer estas escolhas: ou tens carreira profissional ou tens filhos. Eu não posso aceitar isto numa sociedade justa e equilibrada.

Por isso é que falou desta situação enquanto uma nova forma de escravatura?
As pessoas não fazem relação entre os fenómenos: estamos com uma taxa de natalidade baixíssima, temos das taxas mais baixas do mundo. E pode também estar aqui uma explicação para isso. Porque é impossível uma pessoa trabalhar 11 ou 12 horas e equacionar a possibilidade de ter filhos, é muito difícil. Ou sai do emprego ou então é muito difícil. E é escravatura porque ao escravo não é permitido ter família, ao escravo é permitido pôr em risco a sua saúde e até mesmo a sua vida perante um objetivo material. O trabalho é meritório e necessário, mas não estamos numa situação de guerra, numa situação de sobrevivência. É a forma errada como estamos a organizar a sociedade e o mundo do trabalho.

Como é que se pode alterar isso?
Acho que as pessoas têm de se insurgir contra isto, têm de se indignar, têm de em conjunto querer mudar as coisas. Eu acho que isto não se muda pela legislação, mas sim pela cultura, pelos hábitos. As empresas devem dar o exemplo. Há muito tempo que isto é patológico: todas as semanas tenho casos de pessoas que acabam por ficar em quadros de exaustão física, psíquica e emocional decorrente de muitos casos de burn out. O que é patológico é as pessoas não valorizarem que o ser humano tem várias necessidades, entre as quais a do direito ao trabalho e de se sentir útil à sociedade, mas também o de aspirar à felicidade e a ter uma relação amorosa. E tem também a necessidade de muitas vezes não fazer nada, e simplesmente descansar.