Nome: “A Sul de Nenhum Norte”
Autor: Charles Bukowski
Editor: Alfaguara
Páginas: 264
Preço: 17,90€
Em “Bukowski”, uma das canções mais pessimistas dos nunca muito joviais Modest Mouse, Isaac Brooks começa por dizer que a vida lhe parece cada vez mais ser como Bukowski a narra, afirmando de seguida “Yeah, I know it’s a preety good read/ But God who’d wanna be such an ass-hole?”, o que, se, num gesto de generosidade pós-natalícia para com Bukowski, traduzirmos “ass-hole” por canalha, seria qualquer coisa como: “Sim, eu sei que até se lê bem, mas quem é que quer ser um canalha destes?”.
Em “We Call Upon The Author”, Nick Cave vai pedindo ao autor do mundo que explique uma data de coisas a seu ver inaceitáveis, como a doença, a incerteza e a banalidade. No entanto, e de forma inesperada, na penúltima estrofe, Cave grita: “Bukowski was a jerk! Berryman was best!”, o que pode ser traduzido novamente como uma afirmação da canalhice de Bukowski bem como da superioridade artística do poeta norte-americano John Berryman.
É então interessante perceber o que leva a que autores que aparentemente partilham uma visão semelhante à de Bukowski o condenem tão violentamente, ignorando-se neste exercício o facto de canalha ser muitas vezes, no universo particular do autor de A Sul de Nenhum Norte, um elogio.
[“Bukowski”, dos Modest Mouse:]
A resposta a este enigma parece estar no maniqueísmo de Bukowski que tanto Brooks como Cave consideram inadmissíveis. Para Bukowski, só existem duas alterativas: ou somos “americanos saudáveis, cegos de tesão, adeptos de futebol, superalimentados, engraçadinhos, punheteiros, amorosos, assustados, burgueses, peidolas, meninos da mamã e modestos” (p.114) ou somos, tal como Bukowksi, “homens desesperados, homens com dentes escavacados e mentes escavacadas e modos escavacados”(p.161), preferencialmente bêbados e extraordinários a fazer amor. Dentro desta dualidade, Bukowski despreza os que integram o primeiro grupo, vendo-os a todos como putativos membros do segundo assim tivessem a coragem necessária, o que os torna portanto figurantes na obra do escritor. Bukowski vê o mundo sempre como uma repetição infinita do recreio americano, tal como afirma em “Confissões de um homem louco o suficiente para viver com bichos”, o melhor dos contos deste livro.
Esta redução da humanidade (ou, se quisermos ser menos ambiciosos, da América durante os anos da guerra do Vietname) a duas grandes categorias leva a que Bukowski, na senda de Darwin e Freud, reduza bruscamente a complexidade dos homens, oferecendo em troca uma única justificação para todos os nossos comportamentos. Para Bukowski, tudo aquilo que fazemos, sem excepção, é feito por uma pulsão sexual, como se torna evidente, por exemplo, em Maja Thurup, o conto onde uma americana de meia-idade (na verdade, Hester Adams tem trinta e cinco anos, mas, na cosmologia particular de Bukowski, uma mulher de trinta e cinco anos é já uma senhora de meia-idade) se apaixona por um canibal negro. Ao ser entrevistada por Henry Chinaski, o alter-ego de Bukowski, Hester justifica este romance através de razões socialmente aceitáveis como o sentido de humor e “os olhos dele, a cara… tão trágicos. E o modo de andar. Ele, digamos, parece um tigre a andar” (p.66). No entanto, muito mais pragmático, Maja, o canibal, contraria-a ao dizer que “única coisa que aproximar-te de mim (…) é o meu poste telefónico mijão” (p.67).
[uma entrevista com Bukowski:]
https://www.youtube.com/watch?v=aRBo7NOxdu8
Esta visão do mundo de Bukowski é talvez melhor ilustrada por Joe Lighthill, o protagonista de “Solidão”, que, num primeiro encontro bizarro com Edna, lhe recomenda os testes sexuais das revistas ligeiras para assim “poder descobrir quem é e o que é” (p.15). De seguida, afirma que só quando tem relações sexuais com uma mulher existe a hipótese de acontecer algo real e de compreender o que está em jogo nos comportamentos da mulher em causa. Finalmente, Joe tenta beijar Edna que lhe dá uma violenta joelhada nos testículos. Em sofrimento, Joe pergunta: “Porque é que fizeste isso? Tentaste matar-me” (p.17). Para Joe, tal como para Bukowski, um homem impotente é um homem morto porque, na filosofia peculiar de Bukowski, o acesso ao mundo real é feito exclusivamente através do coito.
Esta redução do homem à sua sexualidade torna absurda a descrição que Bukowski faz de si próprio em vários contos como alguém que, tendo jurado fidelidade apenas a si mesmo, não se governa por leis e regras. A não ser que consideremos Bukowski e o seu pénis uma e a mesma pessoa. Mais do que isso, esta mundividência bukowskiana desmente por completo a descrição que o escritor faz dos homens escavacados citada acima, uma vez que esta descrição termina com um louvor a estes, ao afirmar que os escavacados “são cheios de surpresas” (p. 161). Aquilo que percebemos depois de lermos os vinte e sete contos de A Sul de Nenhum Norte é que os homens e as mulheres que neles encontramos são todos iguais e totalmente previsíveis.
Bukowski tem inúmeros méritos enquanto escritor, evidentes, por exemplo, em “Os assassinos”, quando, de forma extraordinariamente virtuosa, escreve: “Harry sentou-se numa das mestas antigas. O café era bom. Aos trinta e oito anos estava acabado”, conferindo às três frases exactamente o mesmo peso. Bukowski mostra a sua sensatez também na compreensão que sempre evidencia de uma incoerência no grupo dos “americanos saudáveis superalimentados”, expressa de forma clara no vídeo abaixo, onde, visivelmente embriagado, critica as pessoas por não terem propósito nenhum nos seus comportamentos e por desejarem apenas dinheiro sem saberem o que fazer com ele. Bukowski afirma-se a si próprio como mais sábio na sua estupidez do que todos os outros por ao menos dançar e festejar à volta do dinheiro.
[“We Call upon the Author”, de Nick Cave:]
No entanto, apesar disso, o próprio Bukowski descreve-se a si mesmo por mais do que uma vez ao longo deste livro como um escritor limitado. Esta limitação parece-me ter três justificações: a percepção de que procura contar histórias que acontecem à sua volta sem qualquer esforço de introspecção, como se torna claro em “É impossível escrever uma história de amor”; a compreensão de que essas mesmas histórias são muito parecidas e sempre à volta dos mesmos temas e pessoas, ignorando todas as pessoas e todos os comportamentos que não obedecem ao esquema que forjou (“preciso de ficar quietinho à espera de que a coisa venha ter comigo. Sou capaz de manipular e espremer assim que ela chega, mas não consigo ir à procura dela. Só sei escrever sobre beber cerveja, ir ao hipódromo e ouvir música sinfónica (…) Como é que me tornei tão limitado?” (p. 185)); e finalmente, porque Bukowski é, para o bem e para o mal, um canalha.
João Pedro Vala é aluno de doutoramento do Programa em Teoria da Literatura da Universidade de Lisboa