Queria ser útil. Não sabia em quê. Ou como. Mas queria ser útil. E vendo o que na Grécia se repetia todos os dias, com refugiados sírios (não só, mas sobretudo) a chegar a Atenas aos milhares, dia sim, dia sim, arriscando tudo – às vezes até a vida, à deriva no Mediterrâneo – e tudo deixando para trás, Patrícia não hesitou e, assim que se viu com o bilhete de avião, viajou até lá. Ainda não se passou um ano desde então. A chegada foi logo no primeiro dia de abril.

Sabia que os refugiados que antes vira pela TV se encontravam no porto de Pireus. “Quando cheguei lá, ofereci-me para ser voluntária. Uma voluntária independente — pois não me tinha inscrito em nenhuma ONG. E assim que cheguei, dei por mim de volta das crianças, a brincar”, recorda Patrícia Amaral. Durante aquelas três semanas (ao todo, entre viagens à Grécia e regressos a casa, passou oito meses em voluntariado) trabalhou sobretudo com crianças por perto. “Aproveitava todo o tempo livre para estar com elas. Acho que é onde me sinto mais útil. Mas durante o resto do dia, e como voluntária que era, às vezes tinha outras prioridades, como a distribuição da comida, a distribuição de tendas, o que precisassem de mim”, explica.

Apesar de tudo, da carência, do abandono, do próprio estigma de ser-se refugiado, Patrícia surpreendeu-se nos primeiros contactos que teve com cada um daqueles sírios. E garante: “Ao contrário do que a maioria de nós pensa – e eu também pensava assim –, eles não são infelizes por viver no campo de refugiados. Nunca senti infelicidade em nenhum. São naturalmente otimistas. Às vezes, quase me esquecia que eles tinham fugido à guerra – é que nunca os ouvi falar em injustiça, por exemplo”.

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Créditos: Michael M. Matias/OBSERVADOR

Patrícia carregava na mochila uma máquina fotográfica. E resolveu captar a felicidade de que fala. Sobretudo a das crianças. Para que outros a vissem. “Inicialmente, queria ter delas uma memória feliz quando o voluntariado chegasse ao fim e regressasse a casa.” Apenas as memórias felizes; às outras, não aproximava a objetiva. Não há tempo para aproximar. “Quando precisam de ti, não pensas imediatamente em pegar na câmara e fotografar. Nem pensas. Não fotografo os momentos em que alguém chora por ter chegado ao porto e não ter uma tenda onde passar a noite, não fotografo os momentos em que os pais estão a ir para o hospital porque o filho lhes está morrer nos braços. Os momentos que sinto necessidade de capturar são aqueles em que me estou a divertir: em que sou a amiga e não só a voluntária”, garante.

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Tudo (ou quase tudo) quanto Patrícia fotografou no campo de refugiados pode ser visto na exposição “A Beautiful Chaos”, em Lisboa e na Universidade Católica até final de janeiro. Contudo, com a exposição Patrícia quer igualmente acabar de vez com o preconceito em relação aos refugiados na Europa e, particularmente, em Portugal. “Acho que a exposição serve também para contrastar com tudo aquilo que lemos nos jornais e vemos nas TV’s diariamente. Aqui não há tristeza. Há o lado humano, as histórias”, começa por dizer-nos. E explica: “É impossível alguém em Portugal identificar-se com a infelicidade dos refugiados. Se o que vês é uma criança ensanguentada depois de uma explosão em Aleppo, não te identificas. Sentes pena, talvez. Mas aquela realidade — que existe em Aleppo — não é a dos europeus nem dos ocidentais. No entanto, se te aperceberes que os refugiados são exatamente iguais a ti, que os filhos deles são iguais aos teus filhos, são crianças, isso criará a tal identificação que às vezes não há”.

— Mas porquê as crianças? Quase não vemos um adulto na exposição…
— É simples: porque são a esperança para um futuro melhor. Tu tens esperança quando vês a felicidade no rosto de uma criança. E pensas: isto é momento mau na vida dela, mas há-de terminar!”

“Eye See a Better World Now”. Para que dos pequenos olhos se veja melhor o mundo

O campo de refugiados (o de Patrícia ficava a 15 minutos do porto de Pireus) é mais do que isso: é uma “cidade”, com tudo o que as cidades têm dentro dele. “Tens lá de tudo: tens um negócio de shesha, outro de falafel, alugam-se bicicletas, há barbearias, gelatarias, há tudo o que precisas, tudo o que imagines. Os sírios são um povo empreendedor. Sempre dentro do campo de refugiados, claro, porque legalmente não podem procurar trabalho fora até o processo de recolocação se iniciar”, explica Patrícia Amaral.

Mas o que a voluntária mais elogia aos sírios é a hospitalidade destes. Tão hospitaleiros, que ela própria resolveu viver no campo de refugiados. E conta: “A casa deles é a tua casa. Quando cheguei à Grécia, vivia num Airbnb. E deixei de viver assim que percebi que me sentia melhor no campo de refugiados do que lá. Aquilo tornou-se na minha casa — e os sírios numa segunda família para mim. Chegámos a ser oito pessoas a dormir numa caravana mínima. Apesar de tudo, era um lugar acolhedor”.

— Eles falavam em regressar à Síria?
— Regressar? Toda a gente quer regressar. Adultos, adolescentes, crianças. Mas as crianças estão a adaptar-se bem a esta realidade nova. Uma das minhas preferidas entre todas, a Ayaat, quando lhe pergunto se gosta da Grécia, ela volta-se para mim e responde: “I love Greece, I love everyone and everything here!”

Ayaat tem sete anos e quer ser médica. “Ela convive muito com os voluntários da Cruz Vermelha e quer ser médica por causa deles”, explica Patrícia. O irmão, Jack, também o que quer ser, mas de oftalmologia. Este, por causa de Patrícia e de “Eye See a Better World Now”, um projeto que a voluntária desenvolveu na Grécia para melhorar a saúde ocular dos pequenos sírios. “Isto começou tudo com uma menina, a Aynes, que precisava de óculos. Os óculos caíam-lhe a cada dois passos que dava, passavam a vida a embaciar e desembaciar — mal sabia que ela tinha uns olhos azuis tão bonitos. Então, resolvi levá-la ao oftalmologista e, depois da consulta, a um oculista de Atenas”, recorda.

Os óculos de Aynes, mal imaginava Patrícia, seriam os primeiros de muitos que entregaria a seguir. “Voltei a contactar o médico, depois o oculista, e ambos resolveram ajudar o projeto com consultas, armações e lentes a um preço mais acessível”, explica. A boa-vontade de ambos não seria suficiente se não existissem “padrinhos”. “São eles que pagam tudo”, lembra. Mas quem são? “Qualquer um pode ser. Confesso que no principio não esperava ter tantos. E sempre que recebo um padrinho novo no projeto é uma surpresa e uma alegria. A maior parte nem conheço. Mas descobrem-me através do Facebook, ou de amigos, e resolvem doar dinheiro para a consulta e os óculos”, explica.

Hoje, e poucos meses depois de o projeto ter começado a funcionar, mais de cem crianças sírias a viver em campos de refugiados em Atenas tiveram uma consulta de oftalmologia. Metade delas recebeu um par de óculos.

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Aos dois projetos que hoje Patrícia tem, o da exposição de fotografia e o de saúde ocular, seguir-se-á um terceiro: um documentário filmado entre refugiados. “Eu estudei cinema. Mas quando fui para a Grécia pela primeira vez, e como fui só durante três semanas, não pensava em fazer um documentário. De todo. Foi quando comecei a ir a mais regularmente que pensei no quão porreiro seria realizar um. Mas tinha que ser um no qual apresentasse um ângulo diferente do que foi feito até aqui, ou seja, o ângulo da relação de amizade que se cria entre o refugiado e o voluntário — no fundo, é a minha história, mas contada por outros”, explica.

Tal como com a exposição, com o documentário Patrícia quer “acabar com os estereótipos”. E recorda: “Há um episódio que vivi na Grécia e que me impressionou muito. Viajava de autocarro e o condutor resolveu parar e expulsar todos os refugiados. Estávamos longe do campo e longe do centro de Atenas. Era verão na Grécia. Estávamos no pico do calor e famílias inteiras, com crianças ao colo, sacos de compras, famílias que pagaram um bilhete, tiveram que sair e percorrer a estrada a pé até à paragem a seguinte. Achei desumano. Não quero que isto aconteça em Portugal. Sim, é normal que os portugueses — não todos, felizmente — desconfiem deles. É normal ter medo do que é desconhecido. Mas se descobrirmos o lado humano dos refugiados, o medo vai-se”, garante Patrícia.