As empresas e motoristas que trabalham com a tecnologia da Uber e da Cabify já têm duas associações criadas para protegerem os seus interesses. Criadas com apenas uma semana de diferença, e sem saberem da existência uma da outra, a Associação Nacional de Transportadores Utilizadores de Plataformas Eletrónicas (ANTUPE) e a Associação Nacional de Parceiros das Plataformas Alternativas de Transportes (ANPPAT) querem ter uma palavra a dizer no projeto de lei que, em breve, vai regulamentar o transporte em veículos descaracterizados.

A ideia de criar uma espécie de ANTRAL deste tipo de veículos surgiu a Chetane Meggi quando estava a tentar começar uma empresa para ser parceiro da Uber e teve dificuldades em reunir as informações necessárias. “E não havia nenhum sítio onde eu pudesse ir para expor as minhas questões”, recorda.

No dia 15 de dezembro, constituiu a ANTUPE, sem fins lucrativos, à qual preside. No espaço de um mês, garante já ter conseguido angariar “mais de 100 associados, que representam sensivelmente 250 viaturas“. Todos empresários. “Também podemos prestar apoio aos motoristas caso tenham alguma dificuldade, quer a nível jurídico, quer a nível documental”, acrescenta, embora considere que os condutores devam ser representados por um sindicato.

A entrevista decorre numa sede provisória, em Telheiras, Lisboa. “Ainda não temos sede definitiva, mas vamos ter um espaço aberto ao público ainda em janeiro.” Chetane Meggi tem 27 anos e é licenciado em Finanças. Conseguiu criar a empresa que queria, que tem atualmente um carro a trabalhar com a plataforma da Uber. No passado, para além de ter trabalhado no setor bancário, teve também uma empresa de táxis, que acabou por vender.

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ANTUPE, Chetane Meggi, Uber, Lisboa, 2017,

Chetane Meggi já teve uma empresa de táxis. © HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

A médio e longo prazo, a ANTUPE quer ser uma voz a ser ouvida na construção do quadro legal, que deverá ser discutido no Parlamento muito em breve. “Pensamos que há sempre a possibilidade de melhorar as condições dos empresários que estão a operar no setor”, diz, ainda que elogie alguns aspetos. Como a possibilidade de os motoristas poderem trabalhar 60 horas por semana. “Muitos trabalhadores acabam por fazer as 12 horas diárias para conseguirem aumentar o seu rendimento. É uma opção do trabalhador”, embora reconheça que estes “deveriam ter condições dignas e não condições de exploração“. O mesmo acontece com os motoristas de táxi. “É difícil fiscalizar e acabam sempre por trabalhar mais horas”, denuncia.

Um dos fatores que obriga estes profissionais a prolongarem as horas de condução são os baixos rendimentos atuais. Para a ANTUPE, “os contingentes deveriam ser implementados pelo Estado” como forma de equilibrar a oferta e a procura e, com isso, melhorar o retorno tanto de motoristas como de empresas parceiras da Cabify e da Uber.

Embora esta última tenha suspendido novas parcerias até ao dia 6 de março — “possivelmente uma estratégia para limitar os operadores, porque sabem que quantos mais forem, mais baixo vai ser o rendimento de cada operador” –, Chetane Meggi não vê com bons olhos que essa decisão fique nas mãos das plataformas eletrónicas. “Até porque, com a aprovação da lei, mais operadoras entrarão no mercado nacional.” Ao Observador, o Governo já tinha explicado que não pode estabelecer um contingente, isto é, um número limite de veículos, por se tratar de um negócio privado. O presidente da ANTUPE vê a questão de outra forma.

São empresas privadas, mas estão a utilizar o espaço público. Tendo em conta que existe uma grande preocupação em relação ao tráfego que se pode gerar nas cidades com estes veículos, é função do Governo regular essa matéria.”

Mais: Chetane Meggi considera que, se o diploma for aprovado tal como está, os profissionais de transporte em veículos descaracterizados (TVDE) ficarão em desvantagem face ao setor do táxi. “Os veículos a trabalhar com Uber e Cabify não podem ter mais do que sete anos e há táxis com mais de 20 anos a circular, é concorrência desleal”, considera. A seu ver, as condições de acesso para os motoristas também não são iguais. “Uma pessoa que já tenha sido condenada por conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legal não pode ter a carteira de motorista TVDE, mas pode conduzir um táxi.” Por fim, “a nossa faturação é feita automaticamente por método de pagamento eletrónico, algo que é posto de lado no setor dos táxis, o que nos leva mais uma vez à concorrência desleal, com fuga ao fisco.

Quem se quiser tornar sócio da associação tem de pagar uma jóia inicial de 10 euros, para custear o fornecimento do cartão de associado. A partir daí, o membro, que tem de ser pessoa singular ou coletiva que exerça a atividade, paga uma quota trimestral de 22,50 euros. Em troca, a ANTUPE presta apoio jurídico e está atualmente a trabalhar em parcerias com gasolineiras, oficinas e outro tipo de “produtos de interesse para os associados”.

“Pesquisei exaustivamente para ver se já havia uma associação com fins semelhantes mas, nessa altura, não encontrei”, sublinha. E não havia. A Associação Nacional de Parceiros das Plataformas Alternativas de Transportes haveria de ser formalizada apenas uma semana depois, a 22 de dezembro. João Pica, presidente da ANPPAT, também nunca tinha ouvido falar da ANTUPE. Ambos os responsáveis se mostram disponíveis para trabalharem juntos pelo bem do setor.

ANPPAT, João Pica, Uber, Lisboa, 2017,

O presidente da ANPPAT, João Pica. © HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

Os trabalhos para erguer a ANPPAT, igualmente sem fins lucrativos, começaram “há cerca de dois meses e meio” e quase 80 parceiros já fizeram o pré-registo, que se converterá em adesão brevemente. “Mas também estamos dedicados aos motoristas. Nós não existimos sem eles“, sublinha João Pica, empresário do setor TVDE, com dois carros ao seu serviço. “E se eles continuarem nesta precariedade em que estão atualmente, vai ser uma desgraça”, diz, considerando “uma vergonha andar-se a pagar dois euros à hora pelo seu trabalho. Mais vale ir lavar escadas“.

Atualmente, a sede da associação é no concelho da Amadora, enquanto os três fundadores não encontram um espaço definitivo. Foi também na Amadora que se realizou, a 15 de janeiro, a primeira Assembleia Geral da ANPPAT. Os órgãos sociais para o período de 2017-2021 foram eleitos, incluindo o presidente João Pica. “Estiveram quase 50 pessoas, de Lisboa, Porto e Algarve, num universo de 70 a 80 inscritos”, conta. A próxima será em janeiro de 2018.

Uma das coisas que querem corrigir rapidamente é o facto de “os parceiros e motoristas não terem sido ouvidos” pela tutela para a elaboração da lei. João Pica revela que já fez alguns pedidos para ser recebido pelos diferentes grupos parlamentares. Na última semana de janeiro, vai reunir com o PCP e o Bloco de Esquerda. “Espero clarificar algumas matérias, porque serão eles a fazer pressão para alterações à lei, em defesa dos táxis.” Na segunda-feira, o presidente pediu também uma reunião com a Uber. “Para que o negócio seja bom para as duas partes.”

Atualmente, considera que há melhorias a fazer. “Não é por acaso que em França está a haver quase um ‘motim’. Chega a um ponto em que é incomportável”, diz, queixando-se de que não são só os motoristas — a grande maioria são trabalhadores independentes que ganham uma comissão consoante o que for faturado — a enfrentar dificuldades. Os parceiros também. Tirando as despesas todas inerentes à atividade, incluindo o preço do combustível, que tem subido, “o retorno para os parceiros anda na casa dos 10%“, estima. A ANPPAT considera que as comissões cobradas pelas plataformas são “exageradas”, e dá como exemplo a Uber, que começou a operar em Portugal com 15% de cada viagem e atualmente cobra 25%. Esse será um dos assuntos que abordará com Rui Bento, caso o diretor-geral da Uber Portugal aceite a reunião proposta. Considera também que um contingente é necessário, mas que não deve ser o Estado a regular, para não entrar na esfera privada das empresas.

“O nosso mercado é pequeno e estamos a chegar a uma fase em que a procura já não supera a oferta, com a entrada abrupta de viaturas. Devem ser as plataformas a gerir essa parte, e com a nossa ajuda, porque nós temos a noção de onde há maior densidade de viaturas. Penso que a própria plataforma vai ter de fazer a contingência. Porque senão, esqueça. Por muito que tentemos, vamos continuar a entrar na precariedade. Há motoristas neste momento que chegam a esperar uma hora para ter uma chamada. Coisa que não acontecia há quatro meses.”

ANPPAT, João Pica, Uber, Lisboa, 2017,

“Tenho estabelecido contacto com o presidente do sindicato dos motoristas em França, Sayah Baaroun, e ele até me disse uma coisa na semana passada: paragem total, em vários países.” © HENRIQUE CASINHAS / OBSERVADOR

Pontos com os quais a ANPPAT não concorda: a obrigatoriedade de ter na viatura um dístico, com a identificação de que se trata de um transporte de passageiros. “Acho que nos vai causar muitos problemas”, atira, referindo-se aos danos provocados por taxistas. “Garanto que vai haver viaturas danificadas. Se já todos os dias há…“.

Já com as 60 horas semanais, João Pica mostra-se aliviado. “Com essa medida não destruíram, à partida, 50% das empresas ” em atividade. “Sendo sincero, nesta fase é impossível um motorista tirar rendimento se trabalhar menos de oito horas”, afirma, lamentando que, com tantas indefinições, os empresários não possam fazer contratos de trabalho com os motoristas e recorram aos recibos verdes.

Para além do contingente, a ANPPAT defende que as tarifas definidas pela Uber e pela Cabify devem subir. “A média de uma viagem Uber em Portugal, sem contar com as tarifas dinâmicas, fica 50% mais barata que uma viagem de táxi. Em Paris, por exemplo, é três vezes mais barata”. Consideram que tem de haver um ajuste, embora devam continuar abaixo da tabela dos táxis, que critica por acreditar que “mais de 50% passa ao lado da autoridade tributária“, a não passar fatura.

“O cliente é bem servido na mesma e a excelência do serviço não baixa. Se eles querem manter a qualidade, vão ter de alterar alguma coisa. Porque hoje em dia você entra de vez em quando em carros da Uber e já apanhar motoristas que, infelizmente, já se parecem muito com aquelas queixas que se fazem de taxistas. A precariedade leva a que não se consigam arranjar motoristas como deve ser. Para conduzirem 10 horas e ganharem dois ou três euros por hora? É impossível.”

Para aderir à ANPPAT, parceiros e motoristas têm de ir ao site e fazer um pré-registo. Por se tratarem de categorias diferentes, as quotas também serão diferentes: 20 euros no primeiro mês, cinco euros nos restantes — um valor ainda menor para os motoristas. “E não vamos fazer como na ANTRAL, em que a quota é para por cada veículo e depois nas votações também tem 10 votos. Não queremos corporativizar a associação”, clarifica.

Os acordos de parceria para os sócios estão a ser ultimados, nomeadamente um gabinete jurídico para dar apoio a todos os profissionais. “Contabilidade e seguros também conseguimos valores mais simpáticos para os associados, oficinas e também queremos gasolina, mas as gasolineiras só fazem acordos se tivermos um determinado número de viaturas.”

Tal como Chetane Meggi, o presidente da ANPPAT também acredita que um sindicato para os motoristas é bem-vindo, já que, ao reunir empresários e funcionários numa mesma entidade, é possível que, por vezes, “haja alguns choques e os parceiros não vão compreender certas posições”, admite. “Espero que isso não aconteça, temos de trabalhar em prol das duas partes.”

Enquanto vai procurando diálogo em Portugal João Pica diz estar em contacto com o presidente do sindicato dos motoristas em França, Sayah Baaroun. “Ele até me disse uma coisa na semana passada: paragem total, em vários países.