O relógio marcava as 15h italianas (14h em Lisboa) e ainda os preparativos para o desfile estavam a decorrer. Já era certo que o evento não ia acontecer à hora marcada quando uma dezena de modelos masculinos entrou à vez na passerelle: a ordem era para avançar com confiança e, no momento certo, rodar os pés para sair de cena. Afinar o percurso estava difícil, mas nem por isso o designer português Estelita Mendonça, para quem iam desfilar os modelos, estava nervoso. O sorriso estava lá na sessão de treinos e ficou lá já as palmas tinham percorrido o salão do polo cultural Guido Reni District, em Roma. Estelita estreou-se esta sexta-feira na Altaroma, mas não esteve sozinho.
Cada desfile tem a sua ordem de acontecimentos, é certo, tal como cada história tem um princípio, meio e fim. Esta sexta-feira, dia 27, a narrativa começou com vestidos de linhas sobrepostas, prosseguiu com mensagens políticas aplicadas ao vestuário masculino e terminou com uma ode às inspirações digitais. O fio condutor? O talento luso, representado por três designers que mostraram as suas coleções de outono-inverno 2017-2018 num só desfile.
A nova edição da Altaroma — semana da moda na capital italiana que, desde 2005, aposta em novos talentos e que nesta edição prolonga-se até 29 de janeiro — trouxe pela segunda vez nomes e roupas portuguesas com o apoio do Portugal Fashion. Pé de Chumbo, Estelita Mendonça e Susana Bettencourt revelaram em sequência as suas propostas na passerelle para jornalistas, fashionistas e curiosos verem (e fotografarem).
Fio a fio, constrói-se um vestido
Alexandra Oliveira, que dá a cara e as mãos pela Pé de Chumbo, foi a primeira a meter o pé na passerelle. Se, tal como nos contou, as peças levaram entre cinco a 16 horas a serem criadas, foram precisos apenas segundos para cativar a atenção dos presentes. A designer que já antes nos habituou a roupa de fabrico único — a técnica de confeção situa-se a meio caminho entre o tricô e a tecelagem —, fugiu parcialmente aos cinzentos e cores pálidas e fez desfilar peças monocromáticas em roxo e outras com os tons branco, azul e encarnado habilmente intercalados, tal e qual os fios com que trabalha.
Considerando os diferentes mercados onde a marca já atua — só em Itália, a Pé de Chumbo está presente em cerca de 20 pontos de venda —, Alexandra desconstruiu a coleção em peças mais desportivas, outras festivas e ainda propostas que cruzam o chique com o causal. Vestidos fluidos mais e menos compridos, a pensar sobretudo num Médio Oriente com queda para celebrações, foram a grande aposta da designer que nos confessou ter feito tudo ao contrário. “Primeiro montei uma estrutura, comecei com as vendas e só agora comecei a trabalhar a imagem, que tem muita importância para valorizar as peças e subir os preços.” Por trabalhar a imagem entenda-se a introdução no universo dos desfiles.
Roupa que também é uma mensagem política
“É preciso ter um homem no meio”, brincava Estelita Mendonça, ainda nos bastidores, depois de ser anunciado que a sua coleção desfilava em segundo lugar. Foi ele que, fazendo jus à sua imagem de marca, mandou para a passerelle roupas com mensagens políticas. “Vote Human”, “dignity” e “corruption” (“vota na humanidade”, “dignidade” e “corrupção”, em português) foram as palavras que, em conjunto com as peças exclusivamente masculinas, deram nas vistas. À falta de vocabulário, a mensagem interventiva também se fez ver quando um dos modelos desfilou com o cachecol a cobrir a boca — a alusão à liberdade de expressão é, pelo menos, uma das leituras possíveis.
Se a moda é uma arma, a crítica social de Estelita muniu-se de logótipos criados em colaboração com o designer Eduardo Vascov: a ideia é apelar às gerações mais novas para que estas ganhem consciência do que se passa no mundo, Brexit e Trump incluídos. Capas-cobertores feitos a partir de desperdícios de algodão, sacos-cama reprocessados — apesar de Estelita garantir que não é um eco-designer —, mas também calças em pele e camisas brancas de colarinhos justos contaram o resto da história.
O Instagram também dá malhas
Se por um lado houve dedos apontados a uma juventude pouco preocupada com a mundo que a rodeia, por outro houve um tributo às inspirações que diariamente invadem as redes sociais. Quis a açoriana Susana Bettencourt aproveitar a força das malhas com que trabalha e aliá-las à arte urbana que nos chega via Instagram. “Nesta coleção, a inspiração foi o playground [como quem diz o recreio da vida adulta] de hoje em dia, que é o Instagram. Inspirei-me em duas artistas de arte urbana que são também instagramers”, disse ao Observador momentos antes do desfile.
Resultado? Formas geométricas mas também um ou outro apontamento étnico invadiram as malhas de Susana que, na verdade, são criadas de raiz e, por isso, únicas — são feitas a computador, sendo que cada ponto das malhas, que resulta de programações originais, são inventados pela designer que aos cinco anos já trabalhava o tecido à mão. A coleção, que se traduziu essencialmente em vestidos e casacos fluidos e fáceis de usar, chama-se muito a propósito WEAR’ ART. Susana quer que andemos vestidos de arte da cabeça aos pés.
O Observador viajou para Roma a convite do Portugal Fashion.