São ainda um rascunho as vidas que levaram as crianças a cargo da Casa Pia até aos corredores do Museu Berardo, onde semanalmente esquecem os abusos e maus-tratos e se entregam à arte, percorrendo obras de Picasso, Mondrian ou Warhol.
Estas crianças, enviadas para a Casa Pia por ordem do tribunal ou a viver em espaços de acolhimento da instituição, não vão para o Museu Berardo para qualquer tipo de atelier artístico, nem para uma atividade lúdica, esclareceu Vasco Barata, do departamento de Arte e Cultura da instituição: “Vão para ter um contacto sério com a arte, ferramentas para lidar com a arte, para produzirem arte e para que o tempo em que estiverem na Casa Pia seja um tempo que deixe marcas na sua educação”.
O projeto Árvore, no seu segundo ano consecutivo e agora com mais crianças, e também mais velhas, foi desenhado especificamente tendo em conta as características destes jovens. “Como ninguém pode fugir àquilo que é e à bagagem que traz, [o seu passado] é uma parte importante do material com que lidam. Se, por um lado, lidam com arte moderna contemporânea, por outro lidam com a sua bagagem pessoal e aqui é um sítio muito bom de interceção onde eles podem lidar com essas duas coisas de uma maneira muito livre e descomplexada”, adianta Vasco Barata.
A agência Lusa assistiu a um sessão em que as crianças concluíram uma caixa de sombras, inspiradas na artista plástica Lourdes Castro, cujas obras podem ser vistas no Museu Berardo. Com elas chega o barulho e a conversa, a partilha de materiais e a divisão das tarefas. Falam muito e aborrecem-se. Voltam ao entusiasmo e riem. Como qualquer criança. Mas onde a sua felicidade maior se revela é na altura de exibir o trabalho final.
“Quando veem a conclusão é quando finalmente têm o brilho nos olhos e percebem que são capazes. A ideia do ser capaz neste grupo é muito, muito importante”, disse à Lusa Fabrícia Valente, monitora do serviço educativo da Fundação Berardo. Dar brilho aos olhos destas crianças é, aliás, o propósito maior de quem trabalha nesta iniciativa, como explicou Dina Macedo, diretora técnica de casas de acolhimento da Casa Pia desde o início do projeto. “Com estes meninos, que têm histórias de vida cheias de acontecimentos e emoções negativos, o grande desafio é descobrir algo que faça o olho deles brilhar”, disse.
Para Dina Macedo, trabalhar num sítio belo como o Museu Berardo, rodeado de arte por todos os lados, permite “vivências mais positivas”, em contraponto com as histórias “de vida muito difíceis” destes meninos, “vítimas de maus tratos, abuso, negligência grave, abandonos”.
Todos os sábados a missão destes educadores é levar as crianças a “transmitir estes sentimentos através da arte, a pô-los no papel, nas obras”, acrescentou. E às vezes a arte leva as crianças a falar dos seus sentimentos, mesmo quando não o conseguem fazer em outros ambientes, como gabinetes ou outros espaços. Isto porque, segundo Dina Macedo, “a própria obra permitiu libertar sentimentos, emoções mais negativas que depois são trabalhadas e transformadas em algo mais positivo”.
Teresa Lagoa, diretora técnica de casas com programa de pró-autonomia da Casa Pia, destaca os benefícios desta atividade: “É uma arte explicada, vivida, sentida. E isto faz com que se interiorizem e se apropriem das coisas de uma outra forma. Verbalizam, embora não num contínuo, mas percebe-se que é uma experiência que fica, que é interiorizada por eles”.
“Sentem-se artistas, porque se realizam trabalho e se têm vontade de levar esse trabalho a quem está na casa – seja educadores ou colegas que não participaram – é porque acham que a obra feita é uma obra válida, é um bocadinho deles que está ali. E mostrar aos outros que estão com eles que efetivamente conseguiram é brutal para um adolescente”. A coordenadora e responsável pela programação do serviço educativo da Fundação Berardo acredita que no museu estão “os meios e as ferramentas para proporcionar um trabalho no campo da aprendizagem da arte”.
Segundo Cristina Gameiro, o plano passou por envolver as crianças no sentido destas experimentarem, pensarem, fazerem, verem, jogarem e divertirem-se. “O mais importante é eles verem que foram capazes de o fazer. Tudo aquilo que lhes foi proposto fazerem, eles fizeram e de uma forma muito prazerosa e profissional e depois sentiram-se cheios de orgulho por poderem mostrar o trabalho que fizeram”, disse.
A primeira experiência deste projeto acontece na exposição “Quatro variações à volta de nada ou falar do que não tem nome”, do artista Nicolás Páris. Através de exercícios “para se desaprender a desenhar, desaprender a estar no museu”, as crianças desaprenderam a ter preconceitos. Outros nomes sonantes fizeram parte da arte destas crianças: Pablo Picasso, Joaquín Torres-García, Piet Mondrian, Sam Francis, Fernando Lemos, Derek Boshier, Jorge Molder, Georges Vantongerloo ou Andy Warhol.
Todos eles fazem agora parte do currículo destes jovens, como Iaia. Agora com 18 anos e na função de ajudar os colegas, pois já não faz parte do projeto, contou à Lusa o quanto gostou de desenhar, fazer quadros e de ver o seu trabalho exposto na exposição final. Tal como a maioria, Iaia gostou de representar uma casa e a sua até tinha garagem, jardim e um carro à porta. Esta imagem da casa destacou-se aliás em inúmeras obras destes artistas e, a julgar pelo seu passado, terá o amor e a proteção que não tiveram e que os levou a uma outra: a Casa Pia.